Responsabilidade patrimonial do Estado-Juiz

AutorZulmar Antônio Fachin
CargoDocente de Direito Constitucional na Universidade Norte do Paraná. Doutor em Direito do Estado (UFPR), Mestre em Direito das Relações Sociais (UEL), membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Procurador Jurídico da Câmara Municipal de Londrina. Endereço para correspondência: Av. Paris,
Páginas23-32

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Introdução

É sabido que o homem não vive isolado. Por ser um "animal político", sua tendência é viver em comunidade. Robinson Crusoé, vivendo em ilha deserta, apesar de exempo interessante, não é mais que utopia. O homem, movido por seu próprio instinto, foi compelido a organizar-se. Assim nasceu o embrião da sociedade política a que mais tarde se denominou Estado. O Estado é, portanto, um produto da inteligência humana.

O tema da responsabilidade patrimonial do Estado apaixonou doutrinadores e atravessou a escuridão dos tempos, seguindo a clareira aberta pela inteligência pretoriana. Escreveu Josserand, lembrado por Carlos Velloso (1991, p. 137), que "a história da responsabilidade civil é a história e o triunfo da jurisprudência e também, de certo modo, da doutrina". A responsabilidade patrimonial do Estado, ontem inadmitida, é considerada agora matéria de Direito Constitucional cujo questionamento deve ser feito sob a óptica do direito público.

Fases Evolutivas

O princípio da responsabilidade patrimonial do Estado desenhou, no tempo, trajetória muito rica. Tem assento doutrinário que a evolução se deu em três fases distintas: a fase da irresponsabilidade, a fase da responsabilidade fundada na culpa e a fase da responsabilidade baseada no risco.

O Ministro Carlos Velloso (1991, p. 130) assinala que são quatro fases: a fase da irresponsabilidade; a fase da responsabilidade com culpa - doutrina civilista, a fase da publicização da culpa - teoria da culpa administrativa (faute du service) e a fase da responsabilidade objetiva.

Fase da irresponsabilidade

Foram muitos os juristas que, em várias partes do mundo, sustentaram a irresponsabilidade patrimonial do Estado por danos causados aos particulares, tese que, em nossos dias, encontra-se definitivamente superada.

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A fase da irresponsabilidade patrimonial do Estado prevalecia no absolutismo. Fundava-se em princípios do Estado absoluto, segundo os quais o Estado jamais causa dano a outrem. Imperavam velhas fórmulas tais como:

  1. o rei não erra;

  2. o Estado sou eu;

  3. o rei não pode fazer mal;

  4. o que agradou ao príncipe tem força de lei.

Nesse contexto, o Estado não respondia pelos atos lesivos praticados por seus agentes, ficando estes, de modo exclusivo, sujeitos a ressarcir a vítima e, quando não, era esta que absorvia os prejuízos.

O Estado não respondia. Para isso, invocavam-se vários argumentos:

1) o príncipe, que se confundia com a figura do Estado, não respondia por seus atos;

2) o Estado - fonte do direito -, exercendo a tutela jurídica, não poderia ser responsabilizado, pois, em última instância, ele era o Direito;

3) o Estado não poderia indenizar, pois isso significaria empobrecimento do erário. Tal situação não poderia subsistir. E hoje, lembra Bandeira de Mello (1986, p. 252), "todos os povos, todas as legislações, doutrina e jurisprudência universais reconhecem, em consenso pacífico, o dever de ressarcir as vítimas de seus comportamentos danosos". Até mesmo os Estados Unidos da América (1946) e a Inglaterra (1947), os derradeiros, abandonaram a tese da irresponsabilidade.

Fase da responsabilidade com culpa

Superada a fase negativista, a responsabilidade patrimonial do Estado passou a ser admitida com base na culpa. Esta, elemento informador da responsabilidade civil, passou a ensejar a possibilidade, até então afastada, de o Estado, a exemplo do particular, responder patrimonialmente por danos que seus agentes causassem a outrem. A culpa, aqui, veio a se manifestar sob duas facetas: a culpa civil propriamente dita e a culpa administrativa. Examinemos a ambas.

Responsabilidade com culpa

A teoria apoiou-se na culpa da doutrina civilista, com inspiração em velho princípio romanístico. Tendo o agente procedido com culpa na gestão da Administração Pública, nascia o dever de o Estado responder patrimonialmente pelos respectivos danos. Para que isso ocorresse, no entanto, deveriam estar presentes os pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, a ação ou omissão do agente; a culpa; a relação de causalidade e a lesão ao direito de outrem.

Observa Diógenes Gasparini (1993, p. 620) que, nesta fase, o fulcro da obrigação de indenizar era a culpa do agente. É a teoria da culpa civil. Esta culpa ou dolo do agente público era a condicionante da responsabilidade patrimonial do Estado. Sem ela inocorreria a obrigação de indenizar. O Estado e o indivíduo eram, assim, tratados de forma igual. Ambos, quanto à responsabilidade, respondiam conforme o Direito Privado, isto é, se houvessem se comportado com culpa ou dolo. Caso contrário, não respondiam.

Foi nessa fase que se procurou fazer distinção entre atos de império (iure imperii) e atos de gestão (iure gestionis). O dano causado em decorrência de atos de gestão acarretava o dever de indenizar, ao passo que os danos decorrentes de atos de império permaneciam irreparáveis. A distinção foi combatida, pois desprovida de sentido. Todavia, serviu como passo inicial para chegar-se à responsabilidade patrimonial do Estado.

Era necessário, portanto, que se construísse nova teoria, com vistas a possibilitar a responsabilização do Estado quando não se identificasse a culpa. Com isso, chega-se à publicização da culpa

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Responsabilidade com culpa administrativa

Trata-se de uma culpa especial: não é do agente, é do serviço, da Administração. Não importa saber qual agente procedeu com culpa. Basta que esta seja identificada. Isso leva à aceitação da chamada culpa anônima do Estado.

Esta teoria, nascida na França, apoiou-se na falta do serviço (faute du service) da Administração Pública. A faute du service pode-se dar de três modos:

1) o serviço não funcionou, quando deveria ter funcionado;

2) o serviço deveria funcionar bem, mas funcionou mal;

3) o serviço deveria funcionar a tempo, mas funcionou tardiamente. Esta fase da publicização da culpa possibilitou a aproximação à teoria da responsabilidade objetiva. Neste sentido, ensina Hely Lopes Meirelles (1990, p. 547) que a teoria da culpa administrativa representa o primeiro estágio da transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a teoria objetiva do risco administrativo, pois leva em conta a falta do serviço para dela inferir a responsabilidade do Estado. Estabeleceu-se o binômio falta do serviço-culpa do Estado. Observa que, nessa fase, não se indaga da culpa subjetiva do agente administrativo, mas perquire-se a falta objetiva do serviço em si mesmo como fato gerador da obrigação de indenizar o dano causado a terceiro. Embora se exija a culpa, trata-se de uma culpa especial da Administração, a que se convencionou chamar de culpa administrativa.

Fase da responsabilidade sem culpa

Nessa fase, tem-se como alicerce da responsabilidade não a culpa, mas o risco. O Estado responde patrimonialmente pelos danos causados não porque houve culpa do agente, pois desta não se cogita, mas porque com o ato lesivo causou dano à vítima. Duas são as modalidades de risco:

  1. risco administrativo;

  2. risco integral.

Risco administrativo

Nasceu com as decisões do Conselho de Estado francês. Recebe outras duas denominações: teoria da responsabilidade patrimonial sem culpa e teoria objetiva.

Para esta teoria, não se cogita da culpa. Importa apenas em saber se há relação de causalidade entre o ato e o resultado lesivo. Basta a lesão sem concorrência da vítima. Havendo nexo de causalidade entre o fato de serviço e dano, deve o Estado indenizar. Na culpa administrativa exigia-se a falta do serviço; aqui, apenas o fato do serviço.

Mostra Hely Lopes Meirelles (1990, p. 547) que a teoria do risco administrativo faz surgir a obrigação de indenizar o dano quando a Administração, independentemente de culpa, causou prejuízo à vítima. Não se exige qualquer falta do serviço público, nem culpa de seus agentes. Basta a lesão, sem concorrência do lesado. Na teoria da culpa administrativa exigia-se a falta do serviço; na teoria do risco administrativo exige-se, apenas, o fato do serviço. Naquela, a culpa é presumida; nesta, é inferida do fato lesivo da Administração.

Disso podemos inferir que três são os pressupostos da responsabilidade patrimonial do Estado: o fato do serviço; a lesão ao direito de terceiro e a relação de causalidade entre aquele e esta.

A presença desses requisitos acarreta ao Estado a obrigação de...

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