Responsabilidade do estado pela demora na prestação jurisdicional

AutorProf. Paulo Modesto
CargoProfessor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS)
Páginas1-21

Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Público da UNIFACS. Membro do Ministério Público da Bahia, do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB). Conselheiro Técnico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo da Bahia (IDAB). E-mail: paulomodesto@yahoo.com

Para J. J. CALMON DE PASSOS e, in memoriam, para JOÃO NUNES SENTO SÉ

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1. Introdução

Não é simples tratar da responsabilidade do Estado por demora na prestação jurisdicional. O tema impõe a consideração de dois problemas polêmicos: de um lado, a questão preliminar e geral sobre os limites da responsabilidade do Estado por dano decorrente da prestação jurisdicional e, por outro lado, a questão da responsabilidade do Estado por comportamentos omissivos dos seus agentes , sede em que pode ser incluído o tema específico do dano resultante da demora na prestação jurisdicional . A dificuldade cresce de nível, sobremais, quando acrescentamos aos dois problemas anteriores a demanda por "atualidades" ou por "novos aspectos" no tratamento do tema. 1Page 2

2. Responsabilidade do estado por dano decorrente da prestação jurisdicional

Sobre a questão da responsabilidade do Estado por dano decorrente da prestação jurisdicional, de pronto, cumpre dizer que raramente se encontrará no direito brasileiro tema de maior contraste entre a doutrina e a jurisprudência: os discursos são em tudo opostos.

Para a jurisprudência predominante, com aval firme e persistente do Supremo Tribunal Federal, o Estado somente responde por danos decorrentes da prestação jurisdicional em hipóteses expressamente indicadas na lei. Na ausência de previsão explícita e específica, há irresponsabilidade do Estado 2 , sem que se faça distinção quanto a danosPage 3 decorrentes de comportamentos lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos do Estado-Juiz. A regra geral na matéria, segundo a jurisprudência amplamente majoritária, é a responsabilidade pessoal do magistrado , ancorada nas regras do direito civil, vale dizer, a responsabilidade subjetiva e direta do agente público, exigente de demonstração da culpa, referida em diversas disposições infraconstitucionais.

A responsabilidade objetiva do Estado é admitida apenas para as seguintes hipóteses:

a) erro judiciário em condenação penal (CF, art. 5 º , LXXV), com duas ressalvas indicadas pela legislação ordinária (CPP, art. 630): (a-1) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao condenado, como a confissão ou ocultação de prova em seu poder (hipótese em que há rompimento evidente do nexo de causalidade ligando o dano à ação ou omissão estatal) ou, ainda, (a-2) se a acusação houver sido meramente privada (hipótese de exclusão absurda e sem suporte constitucional, uma vez que o processo penal iniciado por acusação privada é também público e de responsabilidade do Estado);

b) quando o condenado ficar preso além do tempo fixado na sentença (CF, art. 5 º , LXXV).

É dizer: a jurisprudência nacional admite a responsabilidade objetiva e direta do Estado apenas na esfera criminal e para decisões definitivas , condenatórias, objeto de revisão penal. Não cogita em admitir a responsabilidade por negligência ou por demora na prestação jurisdicional , nem reconhece a responsabilidade por erro judiciário no cível, nem responsabilidade por decisões não terminativas na esfera criminal ou por decretação indevida de prisão preventiva ou qualquer outra hipótese de responsabilidade por ação ou omissão na prestação jurisdicional. 3Page 4

A jurisprudência nacional predominante tampouco admite a responsabilidade do Estado nas hipóteses já referidas em lei vigente como autorizadoras de responsabilidade pessoal, ou subjetiva, do juiz. Não admitem os tribunais brasileiros, sequer nesses casos determinados em norma específica, responsabilidade subsidiária ou responsabilidade concorrente do Estado. As hipóteses previstas na legislação nacional de responsabilidade subjetiva do magistrado são consideradas hipóteses de responsabilidade pessoal exclusiva, desconsiderando-se o fato de o magistrado atuar como órgão do Estado, como agente seu, no exercício de competências públicas . 4

Na legislação brasileira, a responsabilidade direta, pessoal e subjetiva dos magistrados encontra previsão em diversas normas. Merece destaque a norma expressa no art. 133 do Código de Processo Civil ,Page 5 repetida com pequenas variações no art. 46 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35/1979), que admite inclusive a responsabilidade dos magistrados por demora na prestação jurisdicional. Nesta norma da lei adjetiva, declara-se a responsabilidade do magistrado quando:

a) no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

b) recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, a requerimento da parte.

No segundo caso, o parágrafo único do art. 133 preceitua que a hipótese se determinará somente "depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não lhe atender o pedido dentro de dez dias ".

Os argumentos mais utilizados para sustentar a regra geral de irresponsabilidade do Estado no âmbito das atividades jurisdicionais são basicamente três : (a) argumento da soberania; (b) argumento da coisa julgada; (c) argumento da independência e autonomia do Poder Judiciário.

O argumento da soberania tem sabor antigo e, de certo modo, repercute a velha teoria regaliana da imunidade do Estado. Segundo ela, o magistrado é órgão da soberania e, por isso, não pode responder por danos decorrentes do seu labor, sob pena de perda de sua soberana liberdade de decidir. Não haveria autêntica soberania onde houvesse responsabilidade. O argumento prova demais: fosse válido, também o Poder Executivo e o Legislativo, igualmente expressivos da soberania do Estado, não responderiam pelos danos produzidos e a irresponsabilidade constituiria a regra geral. Ademais, como é evidente, soberano pode ser o Estado brasileiro, nunca de modo especial ou exclusivo o Poder Judiciário, órgão que deve subordinação ao sistema de freios e contrapesos inerente ao princípio da divisão dos poderes.

O argumento da coisa julgada igualmente não merece acolhimento, pois se é verdade que não se pode manter no sistema ao mesmo tempo duas decisões judiciais contraditórias referentes a uma mesma situação de fato, ele não permite explicar a razão de se recusar a responsabilidade quando já elidida a coisa julgada em rescisória ou a razão de não se reconhecer a pretensão indenizatória contra decisões judiciais sem eficácia de coisa julgada, a exemplo das decisões interlocutórias.

O argumento da independência e autonomia do Poder Judiciário tampouco parece consistente. Em diversos países, a exemplo da Alemanha, França, Polônia e Áustria, para dar-se consecução ao objetivo de preservar a autonomia e a liberdade de decidir dos magistrados, o que se temPage 6 excluído é a responsabilização da pessoa do magistrado, não a do Estado. O fundamento dessa orientação é simples: entregar o juiz a demandas diretas das partes, ao revés de preservar a sua autonomia, é hoje considerado fator de desestabilização e inquietação considerável. Nestes países, ao contrário do que ocorre entre nós, o Estado tem assumido a responsabilidade exclusiva perante o cidadão, faltando a este a possibilidade de representar diretamente contra o magistrado. Apenas o Estado, a posteriori , segundo regras de responsabilidade subjetiva estrita, pode responsabilizar regressivamente o magistrado. Com efeito, tem-se acentuado que nos países de responsabilidade concorrente, que admitem tanto a responsabilidade direta do magistrado quanto à do Estado, há menor cuidado com a autonomia do Poder Judiciário. Além disso, a responsabilização exclusivamente pessoal do magistrado facilmente se converte em irresponsabilidade: além da dificuldade na demonstração de culpa pessoal do magistrado, dificilmente os autores encontrarão nos magistrados um patrimônio solvente, capaz de suportar indenizações de monta.

Na doutrina brasileira, o entendimento sobre a questão em tela é radicalmente distinto do adotado pela jurisprudência nacional. Em síntese, pode-se resumi-lo nas teses seguintes:

  1. o art. 37, § 6 º , da Constituição refere ao comportamento dos agentes públicos de qualquer dos Poderes da República, sem qualquer ressalva quanto a danos provocados em decorrência do exercício da jurisdição; 5

  2. a previsão da responsabilidade do Estado não elide a responsabilidade pessoal do agente público, incluindo-se entre estes os magistrados;Page 7

  3. a coisa julgada não impede o reconhecimento da responsabilidade, exigindo-se, apenas, a prévia desconstituição da coisa julgada;

  4. a autonomia do Poder Judiciário e a soberania do Estado não justificam a imunidade do Poder Judiciário em termos de responsabilidade extracontratual objetiva;

  5. responde o Estado por lesões especiais tanto ao patrimônio material quanto moral dos indivíduos.

Não é preciso fazer qualquer esforço para saber que aderimos completamente às teses indicadas, atualmente dominantes na doutrina brasileira 6 e igualmente prestigiadas, em termos gerais, na literatura estrangeira. 7 No passado, antes da Constituição Federal de 1988, elasPage 8 construíram teses de vanguarda 8 , mas hoje parecem defluir da imediata inteligência do sistema constitucional...

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