A solidificação das práticas restaurativas como forma de prevenção à violência estrutural e ao etiquetamento social

AutorMarli Marlene M. da Costa; Charlise Paula Colet
Páginas199-216

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Introdução

Na sociedade atual12, é notória a ineficácia e precariedade das políticas públicas, sendo que seus reflexos negativos repercutem nas condições de vida dos cidadãos, principalmente naqueles que pertencem aos grupos menos favorecidos,Page 200 não somente nos setores da economia, política e cultura, como também são desprivilegiados de direitos e garantias de exercício de cidadania.

Neste sentido, a implementação de um processo contínuo restaurativo é um importante mecanismo de prevenção à ocorrência de violência estrutural e etiquetamento social, ao passo que a classe economicamente dominante, a qual também é politicamente dominante, investe no aparelho do Estado para fazê-lo funcionar conforme seus interesses.

Portanto, a participação social, a partir da solidificação das práticas restaurativas são mecanismos de garantia da efetiva proteção social contra riscos e vulnerabilidades, tendo um papel relevante na democratização da gestão e da execução de políticas sociais, propiciando, assim, a efetivação de políticas públicas restauradoras, mantenedoras da paz social, capazes de garantir o reconhecimento e cumprimento dos direitos sociais até então negligenciados.

Vislumbra-se, destarte, que a articulação da comunidade e das partes envolvidas na prática delituosa a partir da Justiça Restaurativa favorece a defesa e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, garantindo a eficácia de seus direitos, bem como prevenindo e/ou atenuando a violência estrutural e o etiquetamento social, além de constituir-se em um modelo de compromisso em reparação do mal causado às vítimas, famílias e comunidades, afastando-se da preocupação de somente punir os culpados.

Por isso, pode-se afirmar que a efetivação da Justiça Restaurativa garante o exercício pleno da cidadania, quebra a cultura excludente, ao mesmo tempo em que permite o aprendizado da negociação democrática e da construção conjunta da lei quando atribui a sujeitos diferentes e opostos uma igualdade/equivalência em suas habilidade e competência e capacidades de agir, decidir e julgar.

1 Do estado de natureza ao contrato social

Ao estudar-se a origem das comunidades e dos pactos sociais, berços do Direito e do estabelecimento de normas e regras em busca de um bem comum, importa verificar-se o estado de natureza evidenciado por Thomas Hobbes3 no século XVII, que, segundo o qual, os indivíduos vivem de forma isolada e em luta permanente, sendo a expressão “o homem é o lobo do homem” reflexo da realidade dos homens neste estado, pois vigora o sentimento do medo, motivo pelo qual os indivíduos inventaram as armas e cercaram as terras em que ocupavam de forma a proteger-se.

Como bem refere Hobbes, em estado de natureza, impera a lei do mais forte, que pode tanto quanto sua força conseguir conquistar e conservar, não oferecendo a vida garantia de proteção, a menos que tenha mais força que os demais.

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Por outro lado, Jean Jacques Rousseau4, já no século XVIII, concebe o estado de natureza como a vivência isolada do indivíduo em florestas, o qual sobrevive a partir do que a Natureza lhe oferta, comunicando-se por gestos e ruídos. Ou seja, o homem vive em um estado de felicidade, o qual somente vem a ser interrompido a partir da necessidade do outro em dividir, quando surge a propriedade privada, cuja consequência é o estado de sociedade.

O que se percebe é que tanto a concepção de Hobbes, quanto a ideia de Rousseau evidenciam a luta entre fracos e fortes, em que vigora a lei da selva e o poder da força. O estado de natureza somente vem a ser superado com a passagem à sociedade civil, em que o poder político e as leis são criados.

Ao pacto estabelecido pelos homens de convivência pacífica e subordinação às normas, bem como a renúncia à liberdade natural e à posse natural de bens, com a conseqüente transferência de riquezas e armas ao soberano, o qual, a seu turno, possuía o poder de criar e aplicar leis, chama-se contrato social.

Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.5

Vislumbra-se, assim, que a sociedade civil é o Estado, pois a partir do pacto social, os contratantes transferem o direito natural ao soberano, positivando a garantia à vida, à liberdade e a propriedade privada dos governados. Transfere-se, igualmente, o direito exclusivo ao uso da força e da violência, abandonando-se a vingança privada.

A natureza do ato determina de tal sorte as cláusulas do contrato, que a menor modificação as tornaria vãs e nulas; de modo que, não tendo sido talvez nunca formalmente anunciadas, são por toda a parte as mesmas, por toda a parte admitidas tacitamente e reconhecidas, até que, violado o pacto social, cada um torne a entrar em seus primitivos direitos e retome a liberdade natural, perdendo a liberdade de convenção, à qual sacrificou a primeira.6

Portanto, a partir do contrato social, o estado civil traz a ideia de homem “normatizado”, visto que o Direito, originário de um Estado soberano, determina a sua própria essência.7

Enquanto estado de natureza, o homem deparou-se com a superação das dificuldades que ameaçavam a sua sobrevivência, bem como a sua excessivaPage 202 individualidade dificultou o processo de organização capaz de desenvolvê-lo. Somente após abandonar a imagem de homem animal, individual, é que se depara com elementos de organização social, coletiva e dominadora de meio, em que a cooperação passou a ser mais importante ao homem primitivo.

A necessidade de uma organização grupal demandou a busca por formas de identificar regras e normas de maneira a instrumentalizar o poder a partir da segurança jurídica, bem como manifesta Louis Althusser que “o Direito é um dos mais importantes aparelhos ideológicos do Estado, uma vez que permite ao poder político buscar de forma mais segura a dominação”.8

Ou seja, o Direito é utilizado não somente na solução de conflitos dos indivíduos em sociedade, como também para disciplinar, de forma legítima, as relações entre os grupos sociais.9 O que se percebe é que na evolução histórica o Direito confundiu-se muito com a religião e a moral, adquirindo feições místicas a serem respeitadas, sob pena de banimento ou morte daquele que viesse a descumprir tal norma.10

Entretanto, com o agrupamento dos indivíduos, regras e padrões de comportamentos surgiram com o escopo de manter a ordem e a segurança, inicialmente estabelecendo-se normas para enfrentar guerras e produzir o sustento econômico.11

2 A formação da sociedade e a evolução dos mecanismos de punição

Conforme refere Pinto12, pode-se ilustrar a transição das formas arcaicas de sociedade para as primeiras civilizações da Antiguidade a partir do surgimento das cidades, da invenção e do domínio da escrita e do surgimento do comércio.

A fusão destes três elementos (cidades-escrita-comércio), na visão de Pinto13,

representou a derrocada de uma sociedade fechada, organizada em tribos ou clãs, com pouca diferenciação de papéis sociais e fortemente influenciada, no plano das mentalidades, por aspectos místicos ou religiosos. Há, nestas sociedades arcaicas, um direito ainda incipiente, bastante concreto, cognoscível apenas pelo costume e que se confunde com a própria religião.

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A complexidade e o dinamismo da sociedade, acompanhados pela evolução do homem, demandaram o surgimento de um novo direito, cujas primeiras manifestações ocorreram na Mesopotâmia e no Egito.

Na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão social.14

Assim, o que se percebe é que a existência de um direito arcaico ou primitivo em cada sociedade depende do surgimento dos primeiros textos jurídicos a partir da escrita, bem como do grau de evolução e complexidade de cada povo.

O direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade da pré-história fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais considerar que a base geradora do jurídico encontra-se, primeiramente, nos laços de consanguinidade, nas práticas do convívio familiar de um mesmo grupo social, unido por crenças e tradições.15

Enquanto não houve o domínio da escrita, inexistindo, desta forma, legislações escritas e códigos formais, as práticas primárias de controle foram transmitidas de forma oral fundamentadas em elementos sagrados e divinos16, revelando sanções rigorosas e repressoras.

O que se verifica é um conjunto disperso de usos, práticas e costumes, reiterados por um longo período de tempo e publicamente aceitos.17 É o tempo do direito consuetudinário, em que não houve conhecimento da escrita, sendo a casta ou aristocracia "investida do poder judicial era o único meio que poderia conservar, com algum rigor, os costumes da raça ou tribo".18

Embora tenha o direito penal surgido com o homem, não se pode afirmar a existência de um sistema orgânico formado por princípios penais desde os tempos primitivos.19 Evoluiu-se de um direito dominado pelas linguagens mágica e religiosa, em que a desobediência – que ameaçava o grupo frente aos deuses –, obrigou a coletividade a punir a infração, momento de surgimento do crime e da pena, para a necessidade cultural de reagir e praticar a vingança aos grupos.20

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