Retratos de Mulher

AutorNorma Hora Telles
Páginas19-46
Niterói, v. 10, n. 2, p. 19-46, 1. sem. 2010 19
RETRATOS DE MULHER
Norma Telles
Universidade de São Paulo - USP
e Pontifícia Universidade Católicaa de São Paulo - PUC
E-mail: norma.telles@gmail.com
Resumo: Neste texto faço um trajeto pelos
retratos de mulher pintados pela Grande
Arte do século XIX que legou idei as e
convenções ao modernismo, detalhando
algun s elemento s que pode m ser lido s
nesses quadros textuais ou visuais e que
marcaram as moças, desviando-as de um
contato saudável com o corpo e consigo
mesmas. Em um segundo momento, revejo
antropólogas, escritoras, artistas que, no
início do século XX, quebraram a noção
unitária e misógina sobre o corpo e a mente
da mulher e introduziram novos questio-
nament os, n ovas indagações, múlt iplas
subjetividades e modos de ser.
Palavras-chave: corpo; gênero; retratos
20 Niterói, v. 10, n. 2, p. 19-46, 1. sem. 2010
O corpo é o local em que vida e pensamento/imaginário se cruzam e, ao
fazê-lo, delimitam, para os humanos, o mundo da vida. Lembra Godard (2002,
p.1) que cada indivíduo, cada grupo social, em ressonância com seu ambiente,
cria e é submetido a mitologias do corpo em movimento. Os movimentos cons-
troem quadros de referência variáveis da percepção apreendidos de forma global
e dificilmente permitem que o ator ou o observador distingam os elementos e as
etapas que fundam a carga expressiva de seus gestos. Os estados do corpo são
inseparáveis da emoção que, por sua vez, é inseparável do estado de consciência.
As emoções são representações cerebrais de estados corporais; envolvem mapas
corporais no cérebro (DAMASIO, 2004).
Proust, já no início do século XX, em vários trechos de Em Busca do Tem-
po Perdido, mostra essa relação entre posturas corporais, gestos, emoções e
pensamentos: “As pernas e os braços estão cheios de lembranças entorpecidas”
(PROUST, 1995, p. 9). E, em outro trecho, o narrador caminha imerso em dúvidas
e tristes pensamentos quando, distraído, ao recuar para não ser atropelado por
um veículo que passava, tropeça no calçamento; no mesmo instante em que
firma um dos pés numa laje mais baixa, todo o desânimo
[...] sumiu face à mesma sensação de felicidade que em diversas épocas eu julgara
reconhecer num passeio de carro [...], a vista dos campanários de Martinville, no sabor
da madeleine mergulhada no ch á, e tantas outras sensações [...] toda inquietação
acerca do futuro e toda dúvida intelectual se haviam dissipado. As que ainda há pouco
me assaltavam a respeito da realidade de meus dotes literários, e até da realidade da
literatura, tinham desaparecido como por encanto (PROUST, 1995, 176).
Esse trecho memorável encontra eco numa afirmação do estudioso do corpo
e do movimento, quando este nos diz que a sensação de nosso próprio peso é
o que permite que não nos confundamos com o espetáculo do mundo, e que o
estado afetivo concede a cada gesto sua qualidade (GODARD, 2000, p. 20). Em
Proust, seguindo aquela cena, o narrador se lança numa pesquisa em profun-
didade a respeito da felicidade que sente, provocada pelos vários movimentos
– tropeçar, perceber sensações, acompanhar miríades de ideias que passam – e
cujo resultado é o surgimento de seu conceito estético de obra de arte e, afinal,
o esboço do livro que pretende escrever e que até então se julgara incapaz de
criar, exatamente o livro que o leitor está terminando de ler.
A escritora Nélida Piñon também entrelaça os mesmos termos em várias
tramas narrativas; por exemplo, é direta e simples em A casa da paixão: “Marta
amava o sol, queria o homem. Mudar o estado do corpo era alterar todo o pen-
samento...” Em outro livro, a narradora diz a respeito da escrevente:

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