Reverência pela vida: por uma contracultura ecocêntrica no antropoceno

AutorPaulo Freire Vieira, Rui Dias Florêncio
CargoUniversidade Federal de Santa Catarina
Páginas1-21
Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, Florianópolis, v. 19, p. 01-21, jan./dez. 2022.
Universidade Federal de Santa Catarina. ISSN 1807-1384. DOI: https: //doi.org/10.5007/1807-1384.2022.e90095
Ensaio
REVERÊNCIA PELA VIDA: POR UMA
CONTRACULTURA ECOCÊNTRICA NO ANTROPOCENO
Reverence for Life: A Plea for an Ecocentric Counterculture in the
Anthropocene
https://orcid.org/0000.0002.09030.6220
https://orcid.org/0000-0003-1075-8360
A lista completa com informações dos autores está no final do artigo
[...] Queremos
Encher a terra de vida
Nós os poucos (Mbyá) que sobramos
Nossos netos todos
Os abandonados todos
Queremos que todos vejam
Como a terra se abre como flor.
(Canto Guarani Mbyá)
Estamos na itinerância. Não marchamos por um caminho demarcado, não somos mais tele guiados pela lei do
progresso, não temos nem messias nem salvação, caminhamos na noite e na neblina.
(Edgar Morin & Anne Brigitte Kern)
RESUMO
Neste ensaio de síntese bibliográfica os autores oferecem uma imagem cursiva da clivagem antropocentrismo-
ecocentrismo no âmbito do pensamento ecopolítico dos anos 1990. A contribuição de Robyn Eckersley para a maturação
de uma teoria política do ecologismo de corte ecocêntrico é assumida como um ponto de partida. A intenção é explorar
as possibilidades de maturação da sua abordagem com base em aportes extraídos das pesquisas mais recentes em
epistemologia da complexidade, biologia da cognição e aprendizagem sistêmica-transdisciplinar. De forma cursiva, o texto
leva tamb ém em conta os desdobramentos desta linha de argumentação nos d ebates em curso sobre o enfoque de
decrescimento convivial no movimento de crítica pós-desenvolvimentista do ideário neoliberal. Como hipótese de trabalho,
os autores argumentam que a busca de saídas efetivas (ou à montante) para os dilemas do momento dependerão de
algo ainda muito difuso e carente de legitimidade no imaginário coletivo globalizado, a saber: uma metamorfose cognitiva
e ética inspirada numa cosmovisão ecocêntrica.
Palavras-chave: Ecologia política. Ecocentrismo. Biologia da cognição. Aprendizagem transdisciplinar. Antropoceno.
Paulo Freire Vieira
Doutor em Ciência Política pela
Universidade de Munique, Alemanha.
Professor-titular aposentado do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e
Ciência Política da Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
E-mail: vieira.p@ufsc.br
Rui Dias Florêncio
Doutorando em Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
E-mail: ruidiasflorencio@gmail.com
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Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, Florianópolis, v. 19, p. 01-21, jan./dez. 2022.
Universidade Federal de Santa Catarina. ISSN 1807-1384. DOI: https: //doi.org/10.5007/1807-1384.2022.e90095
ABSTRACT
This essay provides a synthetic and exploratory review of the ecocentric strand in the field of ecopolitical thinking as has
been stated by Robyn Eckersley in his masterpiece published in the 1990´s. From this starting point, the authors seek to
build creative bridges linking Eckersley´s ecopolitical model to creative insights based upon complex systems, biology of
cognition, and transdisciplinary ecological learning. Besides, the text show some projections of this line of thought in the
current ecopolitical debates around the concept of degrowth and the post-development appraisal of neoliberalism.
A radical change of perception in dealing with the structural drivers of the global socioecological crisis is considered in the
text as a crucial requirement in the search of an ecocentric-based way of living at the crossroads of the Anthropocene.
Keywords: Political ecology. Ecocentrism. Biology of cognition. Transdisciplinary learning. Anthropocene.
1 INTRODUÇÃO
Hoje em dia já se tornou quase um lugar-comum reconhecer que ingressamos numa
nova época geológica: o Antropoceno. No longo processo evolutivo do Homo Sapiens
Sapiens, a escalada dos impactos que produzimos no metabolismo basal do Sistema-Terra
(WESTBROEK, 2015) já atingiu um nível historicamente inédito. As evidências de distúrbios
irreversíveis nos grandes ciclos biogeoquímicos do planeta estão exigindo um
questionamento mais rigoroso da lógica profunda que impulsiona a marcha da civilização
termo-industrial. A perspectiva de um possível colapso planetário até o final deste século
está refletida no extenso rol de sintomas que configuram o perfil de uma “poli-crise de
escopo civilizatório” (MORIN e KERN, 2000; MAGNY, 2019). Neste sentido, falamos de
curvas exponenciais de (i) consumo de energia, de poluição e de degradação extensiva e
acelerada de ecossistemas e biomas; (ii) de perda irreversível de espécies (a “sexta
extinção em massa”); (iii) de crescimento demográfico e agravamento das desigualdades
sociais e dos índices de violência (direta e estrutural); e (iv) de mercantilização generalizada
do patrimônio natural e cultural da humanidade.
Para muitos intérpretes do pensamento ecopolítico contemporâneo, tais sintomas
evidenciam a prevalência de uma percepção antropocêntrica-dualista da nossa relação
com o mundo natural (HESS e BOURG, 2016; BOURG e SWATON, 2021). Ao que tudo
indica, perdemos de vista a intuição de que vivemos imbricados numa teia de
interdependências dinâmicas envolvendo todos os seres vivos na matriz ecosférica (BOHM,
1980). Esta interpretação tem gerado um espectro diversificado de visões - otimistas e
pessimistas - acerca das chances de atenuarmos o potencial destrutivo embutido nas
tendências destrutivas em curso. De forma paradoxal, se por um lado ampliamos nossa
compreensão da imensa complexidade envolvida na evolução dos sistemas de suporte da
vida na ecosfera, por outro continua prevalecendo na geopolítica global a crença de que o
mundo natural pode (e deve) ser considerado como um vasto e inesgotável reservatório de
“recursos” a serem explorados indefinidamente e em benefício exclusivo dos seres

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