Rituais de Interação na Vida Cotidiana: Goffman leitor de Durkheim

AutorJuares Lopez de Carvalho Filho
CargoDoutor em Sciences Sociales et Économiques pelo Institut Catholique de Paris
Páginas137-159
DOI DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n34p137
137137 – 159
Rituais de Interação na Vida Cotidiana:
Goffman, leitor de Durkheim1
Juarez Lopes de Carvalho Filho2
Resumo
Este artigo propõe uma exegese da f‌iliação de Goffman à sociologia durkheimiana, relacionando
duas obras: Ritual de Interação e As Formas elementares da vida religiosa. Ele acentua dois as-
pectos que estimamos presentes nos dois autores: os ritos e a sacralidade do indivíduo e a dimen-
são moral da vida em sociedade. Para Goffman, os ritos de interação são ocasiões de af‌irmar a
ordem moral e social. Num encontro face a face, cada ator social busca fornecer dele uma imagem
valorizada, a “face” ou “valor social positivo que uma pessoa reivindica efetivamente através da
linha de ação que os outros supõem que ela adotou no curso do contato particular”. Em Ritual
de Interação, Goffman critica sociólogos e antropólogos sociais que, tomando por objeto a signi-
f‌icação simbólica da sociedade moderna a partir de Durkheim, não levaram em conta a noção de
alma, presente nas Formas elementares da vida religiosa. Após identif‌icar as inf‌luências intelec-
tuais e científ‌icas na formação do habitus e do métier sociológico de Goffman, o texto propõe-se
a analisar noções como regras, alma, ritos, deferência e o porte, necessários para a compreensão
da trama social na ordem da interação. Conclui-se expondo um quadro comparativo dos ritos
tais como descritos por Goffman, decalcados a partir da tipologia durkheimiana. Espera-se que
a leitura de Goffman à luz de Durkheim seja uma via de acesso à sociologia do primeiro, e uma
forma de atualizar as contribuições do segundo na leitura da trama social da vida cotidiana.
Palavras-chave: Ritual de interação. Fachada. Regras. Ritos. Deferência e porte.
Introdução
O presente texto, como o título pode sugerir, não propõe uma análise
completa do livro Ritual de Interação: ensaios sobre o comportamento face a face,
1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no 17º Congresso Brasileiro de Sociologia, em julho de 2015,
em Porto Alegre, UFRGS-RS, no GT-34 Teoria sociológica. Agradeço ao seu coordenador, Prof. Dr. Carlos Edu-
ardo Sell, por suas ponderações e observações, importantes para o estabelecimento desta nova versão. Sou
igualmente grato aos pareceristas da Revista Política & Sociedade, pelas leituras atentas e as sugestões para
a presente versão.
2 Doutor em Sciences Sociales et Économiques pelo Institut Catholique de Paris. Professor do Departamento de
Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA. Atualmente é pós-doutorando na Université de Lorraine, Nancy, França.
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do sociólogo canadense radicado nos Estados Unidos, Erving Goman. Ele
objetiva, a partir de uma leitura exegética, identicar a liação de Goman
à tradição sociológica durkheimiana3. Se as citações que ele faz de Durkheim
não são abundantes, elas indicam empréstimos importantes. Este texto acen-
tua dois aspectos: os ritos e a sacralidade do indivíduo e a dimensão moral da
vida em sociedade. Os ritos de interação para Goman são ocasiões de armar
a ordem moral e social. Num encontro face a face, cada ator social busca forne-
cer dele uma imagem valorizada, a “fachada” (face, em inglês) ou “valor social
positivo que uma pessoa reivindica efetivamente através da linha de ação que
os outros supõem que ela adotou no curso do contato particular” (GOFF-
MAN, 2011, p. 13-14). No livro Ritual de interação, Goman critica certos
sociólogos e antropólogos que tomando por objeto a signicação simbólica
nos estudos da sociedade moderna inspirados em Durkheim, não levaram em
conta a noção de alma, presente nas Formas elementares da vida religiosa. As
noções de deferência e porte que Goman utiliza servem para apreender certos
aspectos da vida secular e moderna no mundo urbano, no qual a pessoa se vê
uma espécie de sacralidade através dos atos simbólicos. Essas noções traduzem
as noções durkheimianas quanto à religião primitiva. Nas Formas elementares
da vida religiosa, após examinar os princípios da religião totêmica, Durkheim
estuda a noção de alma; para ele “assim como não existe sociedade conhecida
sem religião, também não existe sociedade, por mais grosseira que seja a sua
organização, na qual não se encontre todo um sistema de representações cole-
tivas que se relacione com a alma...” (DURKHEIM, 1998, p. 343).
Para ns de embasamento da leitura que Goman faz de Durkheim, faz-se
necessário visitar outros elementos analíticos declinados no livro Relation in
Public, que, em efeito, completa as análises de ritual de interação.
Neste artigo, apresentaremos em primeiro lugar, alguns elementos que
justiquem as inuências intelectuais e cientícas para a formação do habitus
cientíco e a formação do métier sociológico de Goman. Em segundo, a m
3 Agradeço a Bertrand Masquelier (PhD em Antropologia), vinculado a Paris 3 Sorbonne Paris Cité, membro
do Laboratoire de Langue et Tradition Orale (LACITO), na França, que foi meu professor, e com quem tive a
ocasião de discutir algumas vezes sobre as dívidas intelectuais de Goffman em relação a Durkheim. As pistas
que ele me forneceu, foram, aos poucos, estruturando essa pesquisa. Suas pesquisas, no campo da antropolo-
gia da interlocução, buscam estabelecer o lugar que a antropologia social acorda à linguagem (2005; 2015);
notadamente, seus trabalhos sobre o Calypso de Trinidad y Tobago (2012) encontram inspiração no Goffman
de Façon de Parler (Forms of Talk) que contribui para a antropologia da interlocução.

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