Ritual de iniciação no Alto Xingu: a reclusão feminina Kamayurá

AutorSofia Pereira Madeira
CargoUniversidade Federal de Uberlândia
Páginas404-421

Sofia Pereira Madeira1

    Initiation ritual on the Alto Xingu: the Kamayurá feminine reclusion

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Introdução

Apresente pesquisa teve início com a leitura de monografias etnográficas, seguida de trabalhos de campo realizados em visitas ao grupo indígena Kamajurá2 - localizado na aldeia de Ipawu, no Alto Xingu, Estado do Mato Grosso. Pelo método da observação participante,3 pude acompanhar e vivenciar o cotidiano daquele grupo, e selecionar uma problemática que se mostrou de grande relevância. Durante conversas livremente estabelecidas, tomei conhecimento do ritual de "aprisionamento" de jovens índias que, quando têm seu primeiro fluxo menstrual, são reclusas em certa parte da casa, sendo-lhes proibida a saída. Questionei algumas meninas - ainda impúberes - acerca desse ritual de iniciação. Afinal me interessava saber o que pensavam a respeito. Todas se puseram a rir, e uma disse que tinha medo, pois sabia que sua hora estava chegando. Durante a conversa, muitas se entreolhavam e sorriam, demonstrando certa timidez. Fomos nos aproximando e as conversas e informações se deram mais naturalmente.

Logo percebi que tal ritual tinha magnitude até então por mim desconhecida. Durante uma conversa com Takumã, pajé da aldeia e pai de uma moça reclusa, percebi que o ritual parece "amarrar" a cultura local, preparando as moças para se transformar em mulheres, ou seja, mães e esposas. Tal reclusão pareceu-me, à primeira vista, um sacrifício, talvez até uma penitência, mas logo percebi que ali se daria a construção social da mulher Kamayurá. Essa construção precisaria, portanto, de tempo e isolamento para se dar de forma sólida e completa, talvez com o intuito de fortalecer e sedimentar os laços e costumes daquela cultura.

A jovem "presa" aprende a confeccionar artesanato, tecer o fio do algodão e a cozinhar com a mãe e outras mulheres do grupo, num intervalo de tempo que pode variar, mas dura ao menos um ano. Durante esse período, sua franja não poderá ser aparada, crescerá até cobrir-lhe o rosto, o que impede que indivíduos de fora do círculo familiar lhe olhem diretamente nos olhos. Concluído o tempo de reclusão - delimitado pelo pai da moça -,

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a jovem é apresentada a toda a comunidade como mulher, passível de pretendentes e propostas de casamento. Além de preparar as jovens para ser esposas e mães (sobretudo de homens), a reclusão as mantém intocadas - já que são inacessíveis aos homens -, serve, portanto, como controle de natalidade do grupo e previne que tribos rivais roubem suas mulheres. 4

O ritual feminino de iniciação tem acontecimento correspondente no universo masculino, porém, é facultativo, aplica-se àqueles jovens que desejam se tornar líderes do grupo ou grandes lutadores do Huka-huka.5 Nesse último caso, por volta dos 14 anos de idade, os rapazes são confinados e recebem alimentação especial, específica para a limpeza corporal e enrijecimento muscular, o que, somado aos ensinamentos dos velhos lutadores e intensos treinamentos da luta, prepara o jovem rapaz para ser um exímio lutador da tradicional luta alto-xinguana. Tal acontecimento marca o ritual de passagem dos jovens para a idade adulta.

O Huka-huka tem versão feminina, embora seja restrito às moças púberes e tenha menor importância, porém, ambas as lutas ocorrem durante o ritual do Kwaryp,6 cerimônia que reverencia os mortos ilustres e remonta à narrativa mitológica fundadora da vida humana.

O ritual do Kuarup revive a narrativa religiosa dos índios do Xingu, centrada na figura de Mawutzinin, relativa à vida e à morte de seres humanos. [...] Mawutzinin é um ser eterno, antropomorfo, responsável pela criação dos primeiros seres humanos, a partir de troncos de árvore. Mawutzinin é também o responsável pela criação da sociedade, após ceder as filhas que criou de troncos Kuarup para casamento com as onças (ZARUR, 2003) 7 .

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O próprio espaço da reclusão fundamenta-se na narrativa religiosa representada na celebração do Kwaryp:

A fabricação primordial dos humanos, de acordo com a mitologia alto-xinguana, foi obra de um demiurgo que deu vida a toras de madeira dispostas em um gabinete de reclusão, ao soprar-lhes fumaça de tabaco. Assim foram criadas as primeiras mulheres, entre elas a mãe dos gêmeos Sol e Lua, arquétipos e autores da humanidade atual. Em homenagem a essa mulher foi celebrada a primeira festa dos mortos, que é a mais importante do Alto Xingu e que consiste, portanto, em uma reencenação da criação primordial, sendo também o momento privilegiado de apresentação pública dos jovens recém-saídos da reclusão pubertária. Assim, é um ritual que enreda a morte e a vida; as moças que saem da reclusão são como as primeiras humanas, mães dos homens (CASTRO, 2002) 8 .

O fim da reclusão feminina também coincide com esse momento de magnânima importância na vida dos povos do Alto Xingu, uma vez que, após as lutas, as jovens "presas" abandonam o espaço de sua reclusão, saem de suas casas e são apresentadas a todos, inclusive aos visitantes. Algumas chegam a se casar nesse mesmo dia.

Tendo em vista a relevância social e simbólica desse ritual no interior da cultura alto-xinguana, minha análise gravitará em torno desse "aprisionamento" - abrange sua extensão no interior da cultura Kamayurá - sob a hipótese de que este provoca uma concreta e forte sedimentação da cultura nativa, fortalece e confirma valores, crenças, laços afetivos e práticas sociais.

Dessa forma, parto da análise do papel que esse ritual de iniciação desempenha no interior do grupo selecionado, mais especificamente de sua importância na construção social da mulher Kamayurá. Entende-se, aqui, como "construção social" a formação física e espiritual da pessoa. No caso feminino, essa construção pauta-se em dois princípios: o cuidado com o corpo (sua saúde e beleza) e o domínio das técnicas artesanais.

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Terei como referencial teórico, fundamentalmente, as formulações e interpretações desenvolvidas por VAN GENNEP (1977), SHORTER (1989) e RIBEIRO (1979), no tocante aos ritos de passagem. Caminharei, portanto, numa perspectiva antropológica descrente de modelos analíticos rígidos, que não captam as singularidades explícitas de culturas tão distintas. Partirei da análise crítica da problemática selecionada, associada a trabalhos de campo e à leitura incessante de etnografias que abranjam o aspecto social-ritualístico de culturas indígenas, uma vez que, embora esse tema já tenha sido objeto de estudo de outros autores (ver, por exemplo, TAVARES, 1994), não foram esgotadas as possibilidades de análise do ritual em questão.

A relevância do tema pesquisado, sobretudo nos dias atuais, sugere que o presente estudo trará acréscimos para a literatura indigenista, uma vez que contempla a temática do rito de iniciação sob a luz de elaborações teóricas que salientam a necessidade de maior aproximação entre pesquisador e grupo pesquisado, o que aponta o trabalho de campo como condição sine qua non para a elucidação de uma série de questões.

No contexto atual, significativas mudanças podem ser observadas na vida dos povos alto-xinguanos, claramente percebidas quando contrastadas com a realidade que aqueles povos vivenciavam há quarenta anos. Atualmente, os indígenas - sobretudo os jovens do sexo masculino - participam mais significativamente da vida nacional brasileira. As escolas espalham-se pelas aldeias e professores se multiplicam9 na árdua tarefa de ensinar às crianças e jovens de sua comunidade a leitura e escrita de sua língua materna e da língua portuguesa. Até as aldeias já chegaram televisões, antenas parabólicas (movidas a baterias convencionais ou solares), bicicletas (usadas por homens e mulheres), algumas motocicletas - de propriedade individual - e até caminhões e barcos motorizados.

Diante desse quadro, torna-se mais relevante o estudo do ritual feminino de iniciação, devido a sua importância no reforço e na continuidade da cultura local, bem como na manutenção da estrutura social dos povos do Alto Xingu - dada a centralidade da figura feminina como mãe e educadora, a quem cabe a divulgação dos costumes no interior do núcleo familiar.

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Referencial teórico

A partir da leitura do livro Os ritos de passagem, de VAN GENNEP (1977), fica clara a importância social dos ritos de iniciação. Afinal, para o autor, a vida individual - em qualquer tipo de sociedade - consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a outra. Essas passagens são acompanhadas por atos especiais, pois, no interior de sociedades ditas "semicivilizadas", nenhum ato é absolutamente independente do sagrado.

De acordo com VAN GENNEP (1977, p. 26): "Toda alteração na situação de um indivíduo implica aí ações e reações que devem ser regulamentadas e vigiadas, a fim de a sociedade geral não sofrer nenhum constrangimento ou dano". O próprio fato de viver exige passagens sucessivas de uma sociedade a outra ou de uma situação social a outra, de modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo por começo e término conjuntos da mesma natureza (nascimento, puberdade social, casamento, paternidade, progressão de classe, especialização de ocupação e morte).

A semelhança geral entre diversas cerimônias (nascimento, infância, puberdade social, noivado, casamento, gravidez, paternidade, iniciação nas sociedades religiosas e funerais) dá-se pelo objetivo final delas, que apresentam meios quase idênticos para atingi-lo. O objetivo é fazer um indivíduo passar de uma situação determinada a outra igualmente determinada. Assim, o indivíduo modifica-se, pois tem atrás de si várias etapas, e atravessou diversas fronteiras.

Um aspecto em especial ao qual me reporto para fundamentar a compreensão do ritual feminino de iniciação é a diferenciação que VAN GENNEP (1977) faz entre puberdade...

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