No salão vermelho : políticas para passageiros especiais

AutorKatiuci Pavei
Páginas90-104

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O ônibus* é um meio de transporte muito utilizado por mim, cotidianamente, assim como por milhões de brasileiros 2 . Foi a partir de leituras em antropologia do corpo, que passei a observar esse meio de forma diferenciada e, assim, emergiram diversas questões socioantropológicas. Então, propus-me a analisar algumas dinâmicas que se realizavam nesse espaço e envolviam o aparente “simples” andar de ônibus na cidade de Porto Alegre, no ano de 2003 3 . Desse modo, neste artigo, discute-se a distribuição espacial dos passageiros como ocupação simbólica, uma vez que a estrutura física do ônibus é administrada por diversos atores sociais e pensada a partir de concepções socialmente elaboradas.

Na metodologia, foram empregadas três técnicas: observação participante, análise de documentos e entrevistas semi-estruturadas. Realizaram-se as observações participantes dentro dos ônibus das quatro empresas operadoras da cidade em suas diversas linhas, com tempo de aproximadamente trinta horas. Os registros das observações foram feitos em diário de campo. Analisaram-se documentos oficiais, como legislação municipal, além de jornais e materiais, como encartes e cartazes, fornecidos pelos informantes.

Já as entrevistas foram feitas com alguns atores envolvidos na realização do serviço de transporte coletivo: assessores da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC 4 ), motoristas, cobradores e passageiros. Para tanto, elaboraram-se roteiros de entrevista semi-estruturada específicos para cada grupo de informantes. O grau de formalidade das entrevistas, os locais de realização, a duração delas e os meios utilizados variaram de acordo com a disponibilidade dos informantes. A amostra compôs-se de forma semi-aleatória, sendo entrevistados: dois assessores da EPTC, responsáveis pelo setor de Atendimento ao Cidadão, no prédio da empresa, com uso de gravador (os consentimentos orais foram gravados) e aproximadamente duas horas de duração; quinze motoristas e cobradores de ônibus, a maioria com conversas de curta duração, devido às circunstâncias em que ocorreram, dentro dos coletivos,Page 91 durante o horário de trabalho dos informantes e entre paradas de ônibus, com uso do diário de campo; cinco passageiros, em suas residências, com visitas agendadas (a partir de rede de relações) e entrevistas gravadas (com os consentimentos orais gravados), cada uma com aproximadamente duas horas de duração. 5

O nome dos entrevistados foi substituído por outro fictício no texto, visando a resguardar a privacidade deles.

Ônibus: corpos, espaços e noções em movimento

O ônibus caracteriza-se pela peculiaridade de ser um espaço em movimento e os corpos que nele ingressam ficam em trânsito, em relação a certos referenciais. As pessoas que o utilizam estão em condição de passagem de um local para outro, permanecendo por esse tempo identificadas como passageiros.

Por ser espaço compartilhado por seus passageiros, o ônibus é espaço social e marcado pelas dinâmicas das relações ali estabelecidas. Não são raras as disputas entre os corpos dos passageiros, pois eles têm de ocupar um local fisicamente limitado. Conforme os dizeres de uma passageira:

Depende do horário, num ônibus vazio, não tem problema, mas eu acho muito complicado andar de ônibus. Isso porque às vezes é muito bom. [...] Só que tudo que for de tu ficar junto com um monte de gente, é uma convivência forçada horrível, porque as pessoas não se conhecem e tu tá ali. O espaço é aquele e seja o que Deus quiser e tem situações que tu é obrigado andar naquele [...] (Milena, 25 anos).

Da Matta (1983, p.163 e 189) aplica a noção de espaço liminar de Turner (1974) aos meios de transporte coletivos e afirma que nesses espaços “temos [...] o nível mais alto da liminaridade das pessoas”, porque é “justamente quando a massa não está nem em casa (onde se está integrado como pessoa numa família ou numa vizinhança),Page 92nem no trabalho (quando a situação de estar e pertencer a algum lugar é mais forte)”. As pessoas estão desgarradas e individualizadas do grupo primário, permanecendo em posição de anonimato, atuando por meio de uma “identidade geral” e com as conotações de usuários, passageiros ou transeuntes.

Apesar de a categoria passageiros ter pretensões de ser homogênea e universal, a heterogeneidade que compõe a sociedade tem como local privilegiado de expressão os usuários desse tipo de transporte. Como espaço físico e social predominantemente coletivo, no ônibus, desenvolvem-se dinâmicas próprias, que reproduzem noções da sociedade mais ampla, construídas a partir de disputas pelo poder.

Nesse sentido, partindo-se do pressuposto de que os corpos podem ser entendidos como meio de expressão do sistema social, figurativamente representados como “um microcosmos da sociedade” (DOUGLAS, 1978, p.97), percebe-se que a coexistência de inúmeras pessoas no espaço do ônibus possibilita que nele se expresse também a tensão entre as demais diferenciações sociais existentes, como idade, cor, raça, gênero, classe social, ocupação, além de outras diferenças relacionadas à corporeidade e às noções acerca do corpo.

Em relação à estrutura física, os requisitos de medidas em nível nacional para a carroçaria de ônibus urbanos são estabelecidas pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (IN- METRO), sob a responsabilidade do Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (CONMETRO, 1993). As medidas de referência e suas margens de tolerância padronizam o espaço, baseadas em valores médios da população, sendo que a estrutura física deve fornecer aos usuários as condições mínimas de conforto e segurança durante a trajetória. No entanto, vale lembrar que as noções de conforto, segurança e tamanho são elaboradas socialmente e dentro de contextos.

Por se tratar de referências, as medidas físicas podem sofrer alterações a partir de novas demandas e de acordos estabelecidos entre representantes do setor público, como legisladores e administradores, e do setor privado, como as empresas fabricantes. Por exemplo, com o passar dos anos, houve modificação nos bancos, marcada pela substituição da estrutura inteira por modelos que têm os assentos individualizados, lado a lado. Tal mudança é percebida como positiva pela EPTC para os passageiros, pois, assim, evita-se que as pessoas encostem-se umas nas outras, o que pode diminuir o conforto individual.

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Além da estrutura física propriamente dita, também seu uso é convencionado por disputas de argumentos entre os atores sociais envolvidos na realização do serviço público de transporte coletivo, tais como: prefeitura municipal, vereadores, empresas fabricantes, empresas permissionárias 6 e seus empregados (motoristas, cobradores, fiscais etc.), além, é claro, dos passageiros. No entanto, por se tratar de serviço público, a esfera estatal tem a maior autoridade decisória, assim, cada unidade federativa elabora normas específicas em seus respectivos territórios. No caso do município de Porto Alegre, tais normas aparecem na forma de leis elaboradas pela Câmara Municipal de Vereadores e na forma de atos normativos infralegais (decretos, portarias, resoluções e instruções normativas), feitos pela administração, por meio da EPTC.

Políticas para ir e vir

Segundo a Constituição Brasileira de 1988, no art. 30 (BRASIL, 2003), e as normas do Direito Administrativo Brasileiro, o ônibus é um tipo de serviço público de caráter essencial. Todos os brasileiros têm direito à acessibilidade ao transporte público, mediante algumas contraprestações, como pagamento de tarifas e respeito às normas de circulação. Assim, é efetivado o exercício do direito de ir e vir, que é direito civil conquistado, expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. XIII (ONU, 1948), e garantido pela Constituição Federal Brasileira (1988), no art. 5º, inciso XV, como liberdade de locomoção.

Como forma de ampliar a cidadania e promover os direitos de certos grupos, por exemplo, são criadas políticas públicas de inclusão, o que demonstra que a cidadania não é intrínseca aos seres humanos, nem plena a todos. Em Porto Alegre, cidade que é (re)conhecida por seu caráter democrático 7 , foram elaboradas e aplicadas políticas públicas voltadas a determinados usuários do transporte coletivo, no que diz respeito à utilização dos ônibus.

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A EPTC (2004) considera esses passageiros de tratamento especial , de atenção especial ou, simplesmente, especiais . Eles são conhecidos por meio de cartazes colados nos ônibus e na página na Internet da EPTC. No período de realização da pesquisa, foram identificados nesse grupo: idosos com idade acima de 60 anos, pessoas portadoras de deficiência, gestantes, obesos, portadores de AIDS/HIV (em tratamento), ostomizados, menores vinculados à FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania) e FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) e acompanhantes de alguns beneficiados, além de profissionais, no...

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