O Que é a Sanção?

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas93-109

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Procurando explicar a diferença entre leis naturais e leis jurídicas, percebeu-se que estas últimas não se limitam à representação da lei moral, se engenham para acrescentar à consequência natural do fato uma consequência artificial; o homem que mata outro homem não sofrerá somente os tormentos da consciência, mas outro mal, que se chama pena. Portanto, o juiz, quando constata que um delito existiu, estatui a pena. Mas o estatuir não é suficiente, pelo menos na grande parte dos casos; depois de tê-la estatuída, a pena deve ser infligida. Não basta, em suma, a condenação à morte se o assassino não é morto.

Se o direito culmina no juízo, não acaba porém, ou pelo menos parece que acabe com ele; o exemplo da condenação à morte perfila, ao lado

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do juiz, a escura figura do carrasco. Assim, o direito, depois que com o juízo nos parece ascender para as serenas regiões da luz, parece afundar-se nas trevas. Vem na memória a descida de Jesus ao inferno depois da ressurreição.

Suspeito que a tristeza da pena não seja mais do que uma aparência, aflora ainda uma vez da mesma palavra. Sanção, dizem os juristas. A raiz de santo! Há um senso de mistério nessa coincidência. Antigamente, o réu se chamava sacer: uma coisa consagrada a Deus. Pensava-se então na vingança divina; e o carrasco aparecia como o representante de Deus, que se vinga do direito. O erro não era misturar Deus com essas coisas; virá mais tarde Jesus para se ocupar dos pecadores; mas o que se inverteu, desde então, é o conceito de Deus. O argumento é assim grave, que aqui convém fazer uma pausa.

É preciso parar para considerar a sanção como uma medida que garante o juízo, se a boa vontade abundasse no mundo, de nenhuma outra coisa haveria necessidade além do juízo; aliás, o mesmo processo seria supérfluo se todos os ho-mens soubessem aquilo que devem saber. A balança não serve a outra coisa senão remediar no defeito do pensamento; e no defeito da vontade

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a espada. Uma representa o animus, a outra o corpus do direito.

Os juristas, ao tempo do meu noviciado, conheciam dois tipos de sanção; as chamavam execução e pena. Naquela tentativa de teoria geral, que se delineia no primeiro volume das minhas Lezioni di diritto processuale civile e serviu como armação do edifício que deveria construir mais tarde, não soube fazer outra coisa do que seguir tal classificação. Contudo, não precisava muito para perceber que de execução se fala também quanto à pena; nem outra coisa teria acontecido para entender que o binômio, formulado assim, não pode ser exato. Chegou, por isso, o momento no qual entendi que no lugar da execução deve colocar-se a restituição: restituição e pena são propriamente as duas espécies fundamentais do gê-nero sanção. Mas essas palavras não contém mais do que uma intuição, que deveria desenvolver para poder aí entender, junto, o genus proximum e a differentia specifica desses conceitos.

Sobre esse terreno estou trabalhando pelo menos há trinta anos. O primeiro passo foi a distinção estrutural, que se lê nas minhas lembradas Lezioni e se funda sobre o interesse: a restituição sacrifica o mesmo interesse que o direito tutela e

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a pena, ao invés, submete um interesse diverso daquele. Um primeiro degrau; mas, na verdade, ficava ainda distante. Para tocá-lo, era preciso escavar de outra parte.

Quando mais tarde entendi também que em relação a esse tema a função prevalece sobre as estruturas, não soube dizer outra coisa a não ser que o caráter da restituição é satisfatório e aflitivo, ao invés, o caráter da pena; uma maneira de pensar tanto corrente quanto artificial. Porque, na verdade, essa dificuldade? A razão não pode ser descoberta até que se continue a observar a restituição mais do que a pena. Não esquecemos que aportei na praia do direito penal depois de um longo vaguear através da terra do direito civil; algo como a chegada do velho para o novo continente! Um dia, a mais estranha das aventuras acadêmicas fez com que brotasse de repente sobre a árvore do meu pensamento uma joia que brotou ao tempo da minha juventude; desde então, o problema do direito penal dominou a minha mente e o meu coração. Agora está claro para mim que até que eu considerava a sanção do lado da sombra, essa não podia me revelar seu segredo.

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A pena pode então estar do lado da luz? Antes que noutro lugar, na Itália mais de um jurista acolheu essa afirmação com ironia. Como não, se o setor da pena pode considerar-se o inferno do direito? Nós somos ainda dominados por uma concepção otimista do direito civil bem como por uma concepção pessimista do direito penal. Quando os...

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