'Sapatão não! Eu sou mulher de sapatão!' Homossexualidades femininas e um espaço de lazer do subúrbio carioca

AutorSilvia Aguião
Páginas293-310
Niterói, v. 9, n. 1, p. 293-310, 2. sem. 2008 293
“SAPATÃO NÃO! EU SOU MULHER DE
SAPATÃO!” HOMOSSEXUALIDADES
FEMININAS EM UM ESPAÇO DE LAZER
DO SUBÚRBIO CARIOCA
Silvia Aguião
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
E-mail: saguiao@uerj.br
Resumo: Este artigo baseia-se no trabalho
de campo realizado em um espaço de lazer
noturno GLS no bairro de Madureira, Rio de
Janeiro. Busca-se a apreensão dos sistemas de
classificação, que envolvem sexo, gênero, cor/
raça e estilos, e que orientam a sociabilidade
e a circulação de corpos e pessoas entre os
espaços da cidade. A análise se detém espe-
cialmente nos usos e sentidos de categorias
destinadas a tipificar a orientação homossexual
feminina.
Palavras-chave: gênero; homossexual idade
feminina; categorias ide ntitárias; subúrbio;
cor/raça.
Na cidade do Rio de Janeiro, é possível afirmar a existência de dois grandes
circuitos de lazer noturno dirigidos ao público homossexual, um localizado na Zona
Sul e outro no subúrbio.1 O centro da cidade talvez seja o lugar no qual os dois
circuitos se cruzem. Falas e observações de pessoas com as quais convivi durante
o trabalho de campo organizam esse desenho para o circuito noturno da cidade.
As narrativas hierarquizam as opções da noite GLS carioca, em função de público/
classe, tipo/orientação sexual, preço, localização e acesso, mas igualmente deixam
transparecer como essa organização é relativa. É comum ouvir de quem frequenta
a noite em Madureira, por exemplo, que a boate 1140 (na praça Seca) é lugar de
gente de “nariz em pé”. Já de frequentadores da 1140, ouvi que a boate Le Boy
(em Copacabana) é que era lugar de “gente de nariz em pé”. Seguindo esta lógica,
podemos dizer que ouviríamos do público da Le Boy, que as pessoas têm o “nariz
em pé” na boate 00 (ZeroZero), na Gávea, amplamente conhecida pelos altos preços
praticados na entrada e no bar e, igualmente, pela frequência de pessoas famosas
e/ou com alto poder aquisitivo.
1 Este artigo corresponde a uma parte da pesquisa realizada para minha dissertação de mestrado, orientada pela
professora Laura Moutinho. O trabalho de campo foi conduzido na favela de Rio das Pedras e em um espaço GLS do
bairro de Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro (AGUIÃO, 2007).
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“Sapatão não! Eu sou mulher de sapatão!”
Homossexualidades femininas em um espaço de lazer do subúrbio carioca
Pessoalmente, tinha alguma familiaridade apenas com o circuito da Zona Sul
do Rio de Janeiro. Ao iniciar o trabalho de pesquisa em um espaço do bairro de
Madureira e na favela de Rio das Pedras (Zona Oeste da cidade), percebi uma confi-
guração diferente, no que concerne às categorias e formas de interação social. Mais
adiante descobri que estes aspectos que eu considerava diferentes faziam parte de
um circuito mais amplo do subúrbio.
Entre fevereiro e junho de 2006, inserida em um projeto de pesquisa maior,2
frequentei semanalmente um espaço social no bairro de Madureira, visando à produ-
ção de pequenas etnografias diárias. Pouco tempo depois, passei a ser acompanhada
no mesmo ambiente por moradores da favela de Rio das Pedras, com os quais havia
desenvolvido vínculo de amizade durante uma investigação na localidade, focada
na articulação entre cor/raça, mestiçagem, gênero e homossexualidade (AGUIÃO,
2007). Não se trata aqui de explorar dados desta pesquisa em Rio das Pedras, mas,
em alguns momentos, serão citadas certas situações específicas vivenciadas na com-
panhia deste grupo.
O espaço consiste na Travessa Almerinda Freitas, uma pequena rua onde se
localiza uma das boates mais famosas da região direcionada ao público homossexual,
a Papa G. Semanalmente, esta pequena rua torna-se um ponto de encontro gay ou
GLS.3 É a “Quarta Gay”, frequentada por homens e mulheres de diversas idades, com
o predomínio de jovens.
Neste artigo, descrevo sucintamente o ambiente, as conversas e situações que
presenciei com frequentadores do local. Elaboro a hipótese de que são as classificações
que entrecruzam sexo, gênero, cor/raça e estilos que organizam o desejo, que, por
sua vez, orienta a sociabilidade e a circulação de corpos e pessoas entre os espaços
da cidade. Procuro descortinar algo destes complexos sistemas de classificação,
detendo-me especialmente nos usos e sentidos das categorias destinadas a tipificar
a orientação homossexual feminina, ainda que faça menção às categorias e tipos
relativos à homossexualidade masculina.
2 Projeto Relations among “race”, sexuality and gender in different local and national contexts. Elaborado originalmente
por Laura Moutinho, Omar Ribeiro Thomaz, Cathy Cohen, Simone Monteiro, Rafael Diaz e Elaine Salo. A pesquisa está
sendo realizada por nove centros de pesquisa: USP (São Paulo), CLAM/IMS/UERJ (Rio de Janeiro), CEBRAP(São Paulo),
IOC/FIOCRUZ (Rio de Janeiro), SFSU/CRGS (San Francisco), Center for the Study of Race, Politics and Culture (Chicago),
AGI/UCT (Cape Town), WITS e OUT (Johannesburgo). O grupo de pesquisadores compreende Laura Moutinho (Co-
ordenação geral), Simone Monteiro (coordenação Rio de Janeiro), Júlio Simões (coordenação São Paulo), Elaine Salo
(coordenação Cidade do Cabo), Brigitte Bagnol (coordenação Johannesburgo), Cathy Cohen (coordenação Chicago) e
Jessica Fields (coordenação San Francisco). A pesquisa é financiada pela Fundação Ford e conta com o apoio do CNPq.
3 Rua gay ou rua GLS são categorias nativas. A sigla GLS, que significa Gays, Lésbicas e Simpatizantes, foi a forma pela
qual muitos frequentadores se referiram ao espaço. Segundo França (2006), o surgimento do termo na década de
1990 é correlato ao aparecimento de um mercado direcionado a um público específico. A autora relaciona a categoria
a “[u]ma espécie de tradução da ideia norte-americana de friendly, o S da sigla indica ‘simpatizantes’, numa intenção
de expandir as fronteiras do ‘gueto’, abarcando também consumidores que não se identificam como homossexuais,
mas que, de alguma forma, participam desse universo” (p. 2). Sobre o mercado como processo de atualização e reca-
racterização do gueto e, especificamente, sobre o caso da cidade de São Paulo, ver Simões; França (2005).

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