Atividades secretas em noites sombrias: memória do universo dos garotos de programa

AutorFrancisco Ramos de Farias
CargoDoutor em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro - Brasil
Páginas344-368
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2013v10n1p344
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada
ATIVIDADES SECRETAS EM NOITES SOMBRIAS: MEMÓRIAS DO UNIVERSO
DOS GAROTOS DE PROGRAMA1
Francisco Ramos de Farias2
Resumo
Este estudo destina-se a explicar as relações entre dois tipos de atividades sexuais,
caracterizadas pela ação de um homem em determinados lugares para oferecer e
prestar serviços sexuais, dispondo do corpo para aluguel temporário, identificado
como proprietário, e a de outro que frequenta esses lugares em buscas desses
serviços, identificado como inquilino. Ambos celebram um contrato determinado pelo
proprietário, restando ao inquilino aceitá-lo ou não, mas jamais modificar quaisquer
cláusulas. A ação desses homens e suas consequências relatadas pelo proprietá rio,
em cinco encontros, anotada pelo pesquisador, constituem uma escrita sobre as
várias ocorrências que têm lugar na calada das noites em espaços de grandes
cidades onde ocorre a prostituição masculina. Conclui-se que o contrato entre
ambos não os transforma em aliados devido à assimetria da relação que se
estabelece entre duas posições subjetivas diferentes e que o proprietário utiliza-se
de subterfúgios para negar a sua homossexualidade.
Palavras-chave: Homossexualidade. Prostituição. Memória social. Crime. Desejo.
1 Circunscrição da questão
Um dos cenários de grande repercussão, nas últimas décadas do século
passado, concerne às práticas relacionadas à sexualidade homoerótica. Nessa
época, certa liberalização em relação à homossexualidade e a sua exclusão da
rubrica de doença a retirou das sombras do não-dito. Nos grandes centros urbanos,
o fenômeno alcançou expressões nunca dantes imaginadas: passeatas do orgulho
gay e o surgimento da prostituição viril. Um novo personagem busca um lugar no
contexto das práticas sexuais: o garoto de programa, designação utilizada para o
prostituto viril que presta serviço, quase sempre, a homens. Essa terminologia tem
uma relação estreita com outra da década de 1960: o michê; figura
1 Esta pesquisa foi realizada no período de 1994 a 1998, época em que ainda não havia exigência de
parecer de Comitê de Ética para construção de dados. Faz parte de um projeto, financiado pelo
CNPq, intitulado: Do contrato de locação à morte.
2 Doutor em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Professor adjunto
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Consultor Ad Hoc
da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: frfarias@uol.com.br
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.10, n.1, p. 344-368, Jan./Jul. 2013
345
reconhecidamente homossexual que mantinha relacionamentos sexuais
remunerados. Sem adentrar na questão da prostituição viril pelo viés histórico, nem
nas condições que produziram os personagens michê e garoto de programa,
pretende-se refletir sobre a construção da memória social relativa às atividades
praticadas mediante a celebração de um contrato para a realização de serviços
sexuais entre homens e, igualmente, analisar os seus desdobramentos no âmbito de
práticas sexuais homoafetivas. Não se pretende traçar a matriz histórica do advento
desses personagens, mas sim enveredar por uma trilha para entender um contrato
firmado entre dois homens, para fins de práticas sexuais, com justificativas
diferentes para ambos, pelo menos no que tange ao significado dessas práticas: um
deles, o garoto de programa dispõe de seu corpo para aluguel, admitindo tratar-se
de um serviço prestado, e o outro, o cliente procura satisfação sexual, pagando pelo
“serviço”. Os termos garoto de programa e cliente são um artifí cio utilizado, neste
estudo, para circunscrever os protagonistas desse tipo de práticas sexuais em
função de uma interpretação que considera questões de natureza econômica, já que
previamente há uma negociação estabelecida por um contrato para prestação de
serviços.
O aparecimento do personagem, o garoto de programa, exposto em vias
públicas na condição de objeto de consumo, atende à lógica que rege as ações
humanas na atualidade e, segundo Lumbroso (2008), está ancorado em duas
circunstâncias: por um lado, em modos de proceder decorrentes da revolução dos
costumes sexuais e, por outro, responde ao apelo social relativo às ofertas
disponibilizadas em meios midiáticos. No cenário da contemporaneidade, a busca
por tais serviços pode ser compreendida em termos do enquadramento a
circunstâncias de consumo e à transgressão a determinados costumes, se
considerarmos que determinados homens, ao firmarem um contrato para fins de
práticas sexuais, desviam as ações para outras finalidades como extorsões, roubos,
uso de substâncias químicas, assassinatos.
O móbil para as práticas sexuais concerne aos atrativos do objeto cativante
representado pelo corpo jovem e todas as suas indumentárias. O encanto advindo
do corpo do garoto de programa deixa, em segundo plano, as tradições
estabelecidas do vínculo amoroso, contrapondo-se também às convenções
relacionadas à categoria de gênero assimilada à finalidade da reprodução. A
conformação desse modelo tem, como consequência, a expressão de uma busca

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT