Federação e sistema tributário

AutorFernando Aurelio Zilveti
CargoMestre em Direito Constitucional e Doutor em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas82-92

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1. Introdução

Considera-se um sistema tributário federado a partir da competência impositi-va de seus entes. Outra característica de um sistema tributário observada em diversas jurisdições se dá na repartição das receitas tributárias. Essa estrutura rende elogios da doutrina, que aponta vantagens da federação em relação a outros sistemas. Há de se levar em conta, porém, que o sistema tributário federado enfrenta distorções engendradas em grande medida pela sua mais valiosa característica: a autonomia dos entes tributantes. Vejamos.

Alguns pontos positivos do sistema tributário federado podem ser apontados, como a equidade e a autonomia dos entes tributantes federados.1 Outra vantagem se nota também em relação à cobrança de tributos no sistema tributário federal, estrutura encontrada ainda na Roma de Caio a Teoclesiano.2 Essas vantagens, entretanto, dependem da estrutura federativa constitucional. Além disso, mesmo que a Constituição preveja um sistema tributário federado, é necessário que ele se imponha efe-tivamente, sob pena de agravar distorções típicas dos Estados modernos, com forte centralização do sistema tributário.

A federação teve diversos exemplos nas jurisdições em que foi aplicado. Sempre que se trata dessa forma de Estado, o modelo americano é citado para designar um tipo de federação por agregação. Naquilo que concerne à tributação, a espinha dorsal da federação americana se concentra nas disposições sobre soberania, imunidade e legalidade oriunda da Confederação. A união se deu entre os Estados confederados de New Hampshire, Massachusetts Bay, Rhode Island e Providence Plantations, Connecticut, New York, New Jersey, Penn-silvania, Delaware, Maryland, Virginia, North Carolina, South Carolina e Geórgia. A aparente contraditória disposição entre os artigos dois e três quanto à soberania, de fato, não se realiza, uma vez que os Estados

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mantêm suas soberanias relativas. À Confederação coube a soberania externa, celebrar e manter os tratados internacionais, conforme dispõe o art. 6o.3 A legalidade tributária foi prevista num contexto de divisão de custos da federação entre os Estados, de modo a compartilhar as despesas comuns, em tempos de guerra ou paz, por meio de um tesouro único. Assim, os tributos para suportar os custos proporcionais do tesouro americano seriam instituídos pelo Poder Legislativo dos diversos Estados de acordo como o estabelecido entre eles e o Congresso (art. 8o).

O cerne deste trabalho se encontra na tentativa de demonstrar que os problemas do sistema tributário não estão necessariamente ligados à federação, mas essencialmente à questões pontuais características dos modelos econômicos escolhidos. Há, sem dúvida, uma associação possível entre federação e crescimento de arrecadação. Muito disso se deve à estrutura de arrecadação e repartição do sistema federal. Sustenta-se, por outro lado, que as crises econômicas intensificaram ideologicamente a divisão de competências fiscais. Durante as crises, os políticos debateram com maior rigor a coerência da política fiscal.4

2. Traços históricos da federação brasileira

A questão do federalismo foi apresentada no Brasil antes mesmo da República. Ainda no Império, o Ato Adicional de 1834 reconstituiu o Estado Imperial sob forma federativa. Essa federação, entretanto, esteve muito distante do modelo federalista hoje adotado. A federação brasileira surgiu como instrumento de defesa da unidade imperial, fundado na adesão das províncias. Defende-se, inclusive, que o federalismo nacional tenha sido engendrado antes, durante os trabalhos da Constituinte de 1823, por defensores do Império.5

A proposta, então, é apenas colher a doutrina e questionar alguns pontos nevrálgicos do sistema tributário federativo nacional. Dentre diversos trabalhos doutrinários se destaca, pela abordagem histórica, a monografia de Rubens Gomes de Sousa, que tratou do período colonial e imperial, para fazer um primeiro ensaio da discriminação de rendas. Esse autor também tratou do critério nominalista, típico da Carta de 1891 e da inclusão dos Municípios na partilha tributária. De mais importante do mencionado trabalho pode ser citado a análise do regime federativo, do qual se tratará abaixo, mais detidamente, com interessante crítica à competência residual e concorrente.6

Outra monografia mais recente em que se tratou do tema é da lavra de Alcides Jorge Costa, um relato histórico minucioso da tributação no Brasil.7 Costa dá a notícia de que teria sido Tomé de Souza o responsável de trazer ao País regimento que já tratava de incentivos fiscais, em 1548.8

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Esse regimento dava incentivos para a construção de navios, facultada a importação do material necessário com isenção, além de dar ao beneficiário quarenta cruzados de prêmio. Na mesma época veio, também, o Provedor-Mor da Fazenda, Antônio Cardoso de Barros, que teve o regimento real a nortear suas ações, além de outros regimentos para regulamentar a tarefa dos provedores da fazenda.9

Viveiros de Castro é o autor de importante obra sobre a história da tributação no Brasil, trazendo diversos aspectos da questão federativa. Viveiros de Castro revela a dificuldade do estudo do sistema tributário no período colonial, devido à falta de legislação uniforme. Primeiramente, não vigorava nas colônias a mesma legislação tributária da metrópole. Ademais, nas próprias colônias não eram cobrados os mesmos impostos. Para determinar a quem cabia o poder de tributar seria necessário conferir nas câmaras municipais o exercício desse poder. Teria sido o município o criador dos impostos, sem a participação da metrópole.10

Assim, em que pese se falar frequentemente sobre a federação centrífuga no Brasil, em termos de poder de tributar, o movimento se deu em sentido inverso, ou seja, centrípeto, assim como na federação dos EUA. Note-se que a autonomia tributária municipal brasileira se deu por uma infração normativa, uma vez que não se encontra nas cartas reais que criaram os municípios, nem tampouco na estrutura estatal copiada de Portugal, onde esses entes não exerciam qualquer competência tributária na época. O rei reservava para si justamente o poder de tributar e, naturalmente, com exclusividade.11 Houve, portanto, uma clara usurpação de atribuições dos prepostos do rei no Brasil-Colônia.

Somente em 1727 viria a ser dado o primeiro golpe contra a autonomia dos municípios, quando o governo delegado da metrópole absorveu a iniciativa tributária dos municípios. Um elemento histórico importante para entender esse fenômeno está intimamente ligado com a corrupção. Nesse ano de 1727 se viu necessário nomear um representante imperial para combater os contratadores da arrecadação dos impostos, diante das irregularidades constatadas desses agentes, acobertadas pelas autoridades municipais.12 Para salientar o inconveniente de serem as rendas da coroa arrecadadas de maneira dispersa por diversas repartições, se estabeleceu um tesouro geral com um único cofre, com jurisdição exclusiva ao conselho de fazenda. Em 17 de dezembro de 1790 um alvará uniu o conselho de fazenda ao erário régio.13

Entre as modalidades de tributos coloniais se registra, na leitura dos forais de doação das capitanias, as primeiras normas

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tributárias brasileiras. Em outras palavras, o imposto sobre doação de capitanias seria o primeiro tributo brasileiro, conforme instrumento de doação outorgado a Francisco Pereira Coutinho, em 26 de agosto de 1534, relativo à capitania da Bahia.14

A tributação colonial consistia em impostos de importação, impostos sobre o consumo e impostos sobre a exportação. Esses tributos se denominavam de impostos sobre a circulação de valores comerciais. A propriedade urbana e rural, bem como o capital, eram isentos, o que motivou de certa maneira a criação da aristocracia agrícola, considerada a primeira manifestação histórica do capitalismo brasileiro.15

Dentre diversas disposições, o regimento previa a arrecadação da dízima sobre as mercadorias que viessem ou saíssem do Brasil, segundo o foral de cada capitania. Nota-se, então, a delegação de competência tributária para as capitanias, que tratariam de ter suas próprias receitas.16

No Brasil-Colônia se cobrava àquela época, dentre outros: "a dízima, na alfândega, o subsídio grande dos vinhos, o subsídio pequeno dos vinhos; o subsídio das aguardentes do Reino e ilhas; o imposto sobre o azeite doce; imposto cobrado dos navios que entrasse ou saíssem da costa (guarda-costas); o subsídio dos escravos que iam para Minas; os direitos da carta de seguros e provisões das mercês; o dízimo da chancelaria; as passagens dos rios São João, Paraíba e Paraibuna".17

A atribuição de receitas fiscais específicas aos governos locais antecedeu a Constituição Republicana. Os Municípios e suas Câmaras tinham competência para legislar em matéria tributária. O texto da Constituição de 1824 negava às províncias autonomia tributária. Isso não significava extrair competência dos Municípios, embora fosse observada na legislação infra-constitucional tendência a subordinar os Municípios às Províncias que, por sua vez, tinham sua autonomia restrita, o que resultava de alguma forma na centralização do poder de um Estado unitário, sem suprimir a autonomia.18 Assim, dentro dos limites do Estado unitário, os Municípios e de certo modo também as Províncias, tinham relativa autonomia fiscal.

Ao se fazer breve retrospecto histórico, observa-se que durante o período colonial o Brasil foi Estado unitário, mesmo que se leve em conta a tentativa de descentralização das capitanias hereditárias, que tinham da Coroa garantia de autonomia relativa. Assim, não obstante o País fosse unitário, sua divisão territorial em capitanias já apontava para o que viriam ser os estados federados de hoje, guardadas as respectivas distinções...

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