Sociogênese do fazendeiro do ar. Dilaceramento interior e incorporação de um habitus literário

AutorJoão Ivo Duarte Guimarães
Páginas74-96
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e.85711
7474 – 96
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Sociogênese do fazendeiro do ar:
dilaceramento interior e incorporação
de um habitus literário
João Ivo Duarte Guimarães
Resumo
O presente artigo se debruça sobre a socialização familiar, escolar e prossional de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), com o intuito de trazer à luz as conexões entre as disposi-
ções adquiridas na travessia desses quadros de socialização e a modulação da dicção poética e do
projeto autoral desse que é considerado, pela história e crítica literária, o maior poeta modernista
brasileiro.
Palavras-chave: modernismo mineiro; experiências de socialização; habitus literário.
1. Introdução
O presente artigo se debruça sobre a socialização familiar, escolar e pros-
sional de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), com o intuito de
trazer à luz as conexões entre as disposições adquiridas na travessia desses
quadros de socialização e a modulação da dicção poética e do projeto au-
toral desse que é considerado, pela história e crítica literária, o maior poeta
modernista brasileiro1.
Ainda que escrever sobre Drummond funcione como uma espécie de
rito de passagem da crítica literária, haja vista a imensa bibliograa dedi-
cada ao escritor, a recepção crítica tende a desconsiderar os condicionantes
1 O presente artigo retoma e aprofunda alguns temas de minha tese de doutorado em sociologia sobre o grupo
modernista mineiro (GUIMARAES, 2018), sobretudo o terceiro capítulo, em que me debrucei sobre a trajetória
de Drummond.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 21 - Nº 50 - Jan./Abr. de 2022
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sociais e os constrangimentos externos, as injunções enfrentadas, acionan-
do o biográco sem nenhuma forma de controle, na maior parte dos casos
repisando as pistas deixadas pelo próprio autor ao longo de sua obra.
Buscando sanar essa lacuna, o presente artigo desenvolve uma análise
sociológica da trajetória social de Drummond com o intuito de trazer à luz
os liames entre biograa e bibliograa, entre o autor de carne e osso e sua
versão impressa. O mergulho nas experiências de socialização familiares,
escolares e prossionais conduz a uma reexão acerca dos efeitos dos esque-
mas mentais e comportamentais incorporados nesses espaços na criação de
uma dicção autoral e nos posicionamentos literários de Drummond. Trata-
se, portanto, de investigar o peso das experiências familiares e escolares na
constituição de um habitus literário.
A única biograa disponível sobre Drummond ilumina episódios cru-
ciais de sua trajetória, mas tropeça nas “pedras do caminho” deixadas pela
“ilusão biográca”, reproduzindo e reforçando a tendência de narrar sua
vida como se fosse um percurso orientado para o pleno desenvolvimento
de uma intenção originária, de um projeto criador, de uma vocação de
escritor manifestada precocemente e que busca armar-se e consolidar-se
no desenrolar de sua existência. As situações passadas são encaradas como
sinais ou etapas necessárias ao desenvolvimento de um destino social ine-
vitável, contra o qual não adiantava lutar.
Essa propensão a justicar e a dotar a vida de coerência encontra-se
disseminada tanto nos testemunhos autobiográcos do próprio autor, que
se investe da missão de ser o “ideólogo de sua própria vida” (GUIMARAES,
2018)2, quanto na interpretação de seu biógrafo “[...] para quem tudo, a
2 Entre os numerosos testemunhos autobiográficos deixados pelo escritor, eis um excerto de um dos mais citados:
“Convidado pela Revista Acadêmica a escrever minha autobiografia, relutei a princípio, por me parecer que esse
trabalho seria antes de tudo manifestação de impudor. Refleti, logo, porém, que, sendo inevitável a biografia, era
preferível que eu próprio a fizesse, e não outro. Primeiro, pela autoridade natural que me advém de ter vivido a
minha vida. Segundo, porque, praticando aparentemente um ato de vaidade, no fundo castigo o meu orgulho,
contando sem ênfase os pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem pelo mundo, e
evitando assim qualquer adjetivo ou palavra generosa, com que o redator da revista quisesse, sincero ou não,
gratificar-me” (ANDRADE, 2011a, p. 67).

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