O STF é um tribunal de teses? Mudanças no processo decisório e redesenho do controle de constitucionalidade
Autor | Julia Wand-Del-Rey Cani |
Cargo | Doutoranda em Direito na Universidade de São Paulo (USP). É formada em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestre em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: wdrjulia@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4898-5262. |
Páginas | 24-63 |
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e90221
2424 – 63
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O STF é um tribunal de teses?
Mudanças no processo decisório
e redesenho do controle de
constitucionalidade
Julia Wand Del Rey Cani1
Resumo
O Supremo Tribunal Federal (STF) passou a xar teses jurídicas tanto em casos concretos para
além dos recursos extraordinários com repercussão geral, quanto em ações abstratas de controle
de constitucionalidade. A adoção das teses, aparentemente, modica a ideia tradicional de que
decidir um caso concreto é diferente de decidir uma questão em tese, porque exibiliza fronteiras
processuais originais, à medida que pode expandir de forma vinculante os efeitos das decisões. O
objetivo deste artigo é apresentar o contexto de utilização de teses jurídicas no processo decisório
do STF e discutir possíveis implicações para fatores institucionais associados ao exercício do con-
trole de constitucionalidade.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Processo decisório constitucional. Teses jurídicas.
Controle de constitucionalidade. Mudança institucional.
1 Doutoranda em Direito na Universidade de São Paulo (USP). É formada em direito pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestre em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
E-mail: wdrjulia@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4898-5262.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 21 - Nº 52 - Set./Dez. de 2022
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1 Introdução 2
O Supremo Tribunal Federal (STF) é um tribunal de teses? Algumas evi-
dências indicam que sim; os próprios ministros dizem que sim. Mas o que é
ser um “tribunal de teses”, em termos institucionais e decisórios concretos?
Em última análise, essa é uma armação sobre sua própria identidade. No
julgamento da questão de ordem na Ação Penal (AP) nº 6063, em 2014,
sobre a subsistência da competência do STF para julgar réu que renunciou
ao cargo político, o ministro Roberto Barroso armou que:
[...] o STF deve ser um tribunal de teses jurídicas, e não de julgamento de fatos [...]. Um
advogado deve ter o direito de saber, ao traçar a sua estratégia, qual é a posição do Tribunal
[...]. O STF deve ser um Tribunal, como regra geral, de teses jurídicas que possam orientar
a boa aplicação do direito por todo o País. O STF, num modelo desejável, não deve ser um
tribunal de fazer o varejo de casos concretos.
O então ministro Marco Aurélio Mello se recusou a votar a tese pro-
posta por Barroso, armando: “[...] nós, juízes, não podemos adentrar essa
seara. [...] Não atuo na cadeira do Supremo como consultor e não tenho
que me pronunciar fora das balizas do processo, das balizas dos próprios
autos, fazendo-o para casos futuros”.
Barroso e Mello estavam, nesse caso concreto e ao que parece, em
polos opostos quanto à compressão do tipo de tribunal que o STF deveria
ser. Foi o início de um confronto de concepções que se repetiu, nos anos
seguintes, entre os demais ministros. Em 2016, durante o julgamento do
Habeas Corpus (HC) nº 166.3734, sobre a ordem de alegações nais no
caso de corréus delatores, o ministro Dias Tooli armou que “[...] o tema
foi afetado ao plenário para xação, independentemente do caso concreto,
2 Uma versão preliminar desse trabalho foi debatida no workshop Mare Incognitum e seminário de pesquisa do
grupo Constituição, Política & Instituições, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Agra-
deço a todos os participantes pelos comentários que ajudaram a melhorar o texto. Especialmente, gostaria de
agradecer a Ana Laura Barbosa, Camilla Gomes e Luiz Fernando Esteves por todas as sugestões. Várias das ideias
aqui apresentadas foram publicadas, ao longo dos últimos anos, de forma resumida, no portal JOTA, coluna
SUPRA. Disponível em: https://www.jota.info/autor/julia-wand-del-rey-cani.
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Penal nº 606. Relator Roberto Barroso. Julga-
mento em 07.10.2014.
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 166.373. Relator Edson Fachin. Julgamento em
09.10.2019.
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de uma tese”, “para ser seguida por todos os juízes e tribunais do país”.
Ele foi contestado pelo ministro Alexandre de Moraes, que ressaltou ser
o HC “uma ação concreta” e que não estariam “em sede de ação direita
de inconstitucionalidade”. O ministro Luiz Fux considerou que “[...] se
teve uma coisa que não se debateu foi o caso concreto, mas sim uma tese.
Será que alguém aqui desconhece que esse julgamento do Supremo vai ter
uma ecácia que transcende o caso concreto?”. Por m, o ministro Ricardo
Lewandowski ressaltou que “[...] o compromisso do Supremo é com re-
lação aos valores e princípios da Constituição. E não com os milhares de
casos concretos aguardando julgamento”. O questionamento sobre o
STF ser um tribunal de teses parte, desse modo, do discurso individual de
cada ministro a respeito de elementos que vão além do mérito das decisões.
Para muitos deles, o STF não deveria ser um permanente órgão revisor de
decisões de outros tribunais e, sim, se ocupar da resolução de questões abs-
tratas deslocadas dos fatos e dos casos concretos5. Para outros, as previsões
normativas quanto aos ritos do processo decisório e efeitos originais das
decisões para cada classe processual, por exemplo, não podem ser afastadas
em benefício de uma compreensão especíca acerca de um modelo ideal de
identidade do tribunal. Concepções antagônicas à parte, traçar caminhos
possíveis para analisar a identidade do tribunal requer, primeiramente,
análise de fatores institucionais que contribuem, em última medida, para
o redesenho de modelos originalmente previstos. No desenho de processo
decisório adotado pela Constituição Federal, o STF, além de ser instância
originária para determinados assuntos, atua tanto revisando o exercício
da função jurisdicional pelas instâncias inferiores, quanto analisando, de
forma concentrada e em abstrato, a validade de leis e atos normativos. Há
quem defenda que, para além de revelar um acúmulo dos papeis de corte
constitucional, última instância do Poder Judiciário e instância originária
(VIEIRA, 2008, p. 444), falar em um “Tribunal Constitucional à brasi-
leira” mostra, em verdade, uma “crise de identidade”, na medida em que
5 Parte da literatura sobre o STF se soma à defesa por modelos idealizados de tribunais. Para Patrícia Perrone
(2019, p. 445) “[...] essa é a marca registrada desses anos do Ministro Roberto Barroso à frente do Tribunal: a
inquietação quanto ao que precisa ser aprimorado, o recurso à academia para formular propostas de mudança
e o esforço de empurrar uma agenda transformadora”; “[...] essas iniciativas representam uma contribuição
importante do Ministro Barroso para o aperfeiçoamento do processo decisório do STF e favorecem a construção
de um caminho na direção de uma Corte de Precedentes” (p. 464).
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