O sujeito passivo do IPVA nos casos de alienação fiduciária de veículos

AutorLuísa Carneiro
CargoMestranda em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Direito Empresarial pela PUC/MG. Advogada
Páginas152-166

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1. Considerações preliminares

A Constituição da República de 1988, em seu art. 155, inciso III,1atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituição do Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores-IPVA.

Embora pareça, à primeira vista, um tributo de critérios e parâmetros simples, na realidade o IPVA é cercado de controvérsias. A maior liberdade que os Estados possuem para legislar a respeito do imposto, em razão da inexistência de uma legislação federal uniformizadora de seus aspectos, acaba por resultar em legislações estaduais conflitantes,2gerando conflitos de competência e, muitas vezes, bitributação com relação a um mesmo fato jurídico tributário.

Um dos dilemas que permeiam o IPVA está na identificação do sujeito passivo na hipótese de veículo objeto de alienação fiduciária, contrato pelo qual se tem a transferência da chamada "propriedade fiduciária"3 de coisa móvel, com a finalidade de garantir o cumprimento de obrigação assumida pelo devedor fiduciário, frente ao credor (instituição financeira) que lhe concedeu financiamento para a aquisição do bem.

Diversos Estados da Federação prescrevem, na legislação regulamentadora do

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imposto, que nesses casos o contribuinte é a instituição financeira (credora fiduciária), sendo o adquirente do bem (devedor fiduciário) eleito como responsável solidário pelo tributo.

A investigação levada a efeito no presente artigo pretende aprofundar na análise da referida controvérsia, partindo da delimitação do âmbito da competência dos Estados e do Distrito Federal para instituição e cobrança do IPVA.

2. A materialidade do IPVA

O legislador, ao eleger os acontecimentos relevantes ao desencadeamento de efeitos jurídicos, seleciona propriedades do fato, constituindo conceitos que compõem a hipótese de incidência das normas. Todo conceito é seletor de propriedades, razão pela qual nenhum enunciado prescritivo capta a plenitude do evento ou do objeto a que se refere. Dessa forma, é imperiosa a análise das propriedades designadas pelo legislador como relevantes à constituição das hipóteses e dos consequentes das normas jurídicas tributárias, pois, somente se atendidas em sua totalidade, desencadearão os efeitos dela decorrentes.

A construção normativa em sentido estrito, derivada do exercício da competência dos entes políticos para instituição dos tributos, deve conter, como conteúdo mínimo, os elementos da regra-matriz de incidência tributária (composta pela hipótese, na qual estão os critérios material, espacial e temporal, e pelo consequente, informado pelos critérios pessoal e quantitativo).4O critério material é o núcleo do conceito mencionado na hipótese da norma. Nele encontra-se referência a um comportamento, a descrição objetiva de um fato, de possível prática por um sujeito de direito, apto a dar ensejo à relação obrigacional jurídico-tributária, o qual é representado por um verbo e seu complemento.

Não obstante o constituinte tenha deixado de consignar expressamente o verbo que integra o critério material do IPVA, a interpretação sistemática nos leva a concluir pela adequação do termo ser, visto que a significação construída a partir de tal vocábulo é apta para expressar o fato típico escolhido para dar nascimento à obrigação tributária envolvendo o referido imposto. Já o complemento, segundo o comando constitucional, está representado pela expressão proprietário de veículos automotores, conforme previsto no art. 155, III, da Constituição. A locução deve ser analisada em sua totalidade, pondo em evidência os fatos sobre as quais o constituinte fez recair a tributação. Assim, o critério material da regra-matriz de incidência tributária do IPVA é "ser proprietário de veículos automotores".

Não é por outro motivo que a norma jurídica que tratar sobre o IPVA deverá apresentar, sempre, em sua estrutura, uma hipótese (por meio da qual se apresenta a descrição de determinado fato - ser proprietário de veículo automotor em determinados critérios de tempo e espaço), a qual, uma vez vertida em linguagem competente (jurídica), dá nascimento a uma relação obrigacional entre duas pessoas (dever-ser), em que uma possui o dever de pagar o valor relativo ao IPVA (sujeito passivo) e a outra, o direito subjetivo a essa prestação (sujeito ativo).

2. 1 Os institutos de direito privado como limitadores da competência das pessoas políticas

Parte-se da premissa de que o direito é uno, isto é, nenhuma disciplina integrante do sistema é inteiramente autônoma, desvincu-

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lada das demais.5O direito tributário constantemente se refere a institutos de outros ramos do direito para compor as estruturas das normas de natureza tributária, inclusive para delimitar os aspectos das regras-matrizes de incidência dos tributos. Trata-se do fenômeno da intertextualidade, pelo qual a criação de um texto é dependente de outros textos, sendo que os intérpretes vão fixando conceitos, conforme sua incorporação ao sistema linguístico.6No direito, diversos conceitos são utilizados e definidos em seus diferentes ramos (que fazem parte do todo que é o sistema jurídico), de acordo com o que cada um pretende regular,7sendo que o vasto ramo do direito privado abriga grande parte das regras que regem relações potencialmente tributáveis (como exemplos, têm-se a prestação de serviços, doação, sucessão, propriedade, compra e venda de imóvel, dentre inúmeros outros).

Por tais razões, o Código Tributário Nacional, nos arts. 109 e 110, regulamentou o fenômeno da intertextualidade no âmbito do direito tributário. De acordo com o art. 109,

os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.

Já o dispositivo seguinte determina que

(...) a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas do direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.8Conforme as prescrições supracitadas, a legislação tributária pode se utilizar de institutos do direito privado (e.g., compensação, pagamento), mas as consequências tributárias desses institutos deverão ser buscadas no âmbito do direito tributário. No entanto, é vedado ao legislador ordinário que altere o alcance dos "institutos, conceitos e formas de direito privado", utilizados na linguagem constitucional, para definir ou limitar competências tributárias.

Com isso, o CTN proíbe a burla ao princípio federativo: a alteração da estrutura básica da Federação brasileira (da qual a definição de competências tributárias é indissociável).9Obviamente, vazias de sentido seriam as normas constitucionais responsá-

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veis pela outorga e limitação de competência, caso pudessem seus destinatários alterar o significado semântico de seu texto.

Como ressalta Hugo de Brito Machado, tal dispositivo apenas explicita um mandamento que decorre implicitamente da própria Constituição: "Na verdade, esse dispositivo nem precisaria existir. Embora se tenha de reconhecer o importantíssimo serviço que o mesmo tem prestado ao Direito brasileiro, não se pode negar que, a rigor, ele é desnecessário. Desnecessário - é importante que se esclareça - no sentido de que com ou sem ele teria o legislador de respeitar os conceitos trazidos pela Constituição para definir ou limitar competências tributárias. Mas é necessário porque, infelizmente, a ideia de uma efetiva supremacia constitucional ainda não foi captada pelos que lidam com o Direito em nosso País".10No mesmo sentido são as palavras do Ministro Marco Aurélio, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 150.764:

(...) se a lei pudesse chamar de compra e venda o que não é compra e venda, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição.11Dessa forma, em sendo a materialidade do tributo outorgada pela Constituição, um conceito de utilização já estabelecida no discurso jurídico, não pode o legislador tributário recortá-la para além dos contornos dados em outros domínios do direito.12Os conceitos de direito privado são importantes balizas para dirigir o trabalho do legislador tributário.

2. 2 Os institutos da "propriedade", "posse" e "domínio" e a definição do critério material do IPVA

Como visto, o legislador constituinte, ao atribuir a competência tributária aos Estados-membros e Distrito Federal, incluiu a aptidão para instituição do Imposto sobre a Propriedade de veículos automotores.

Analisando-se, então, o direito privado correlato, pode-se dizer que "propriedade" é direito subjetivo, que, como tal, manifesta-se, invariavelmente, na forma de relação jurídica. O direito de propriedade está inserido no âmbito dos chamados "direitos reais"13ou "direito das coisas",14que, em suma, reúnem as regras que norteiam o aproveitamento das coisas pelos seres humanos.15Mais especificamente, tal ramo do direito cuida da relação entre o titular do direito sobre a coisa e outro ou outros sujeitos determinados, na qual aquele tem o direito de exigir destes uma atitude de respeito pelo exercício de determinados poderes sobre um bem.

Dentre os direitos reais, analisaremos mais detidamente a posse, o domínio e a propriedade, tendo em vista que o conhecimento de tais...

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