Súmula vinculante

AutorProf. J. J. Calmon de Passos
CargoProfessor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)
Páginas1-16

Professor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS). Advogado em Salvador.

Page 1

1 - Sempre que o objeto da análise é a parte de um todo, o que é necessário para se ampliar seu conhecimento, faz-se indispensável, subseqüentemente, seja ela reintegrada ao todo de que foi isolada, para que haja sua compreensão. Tenho afirmado em várias oportunidades, e insistentemente, que nada é sozinho, bem como nada é para sempre. Faz-se imperativo não esquecermos a interdependência de quanto existe, incapaz de ser e funcionar solitariamente. Como se impõe termos sempre em mente a precariedade e transitoriedade de todo conhecimento. O presente estudo sobre a súmula vinculante atenderá a essa preocupação. Compreendê-la , portanto, exigiu de mim fosse referida ao todo de que é parte. Porque meu pensar jurídico, eu o elaboro com base em algumas convicções fundamentais para mim, será a partir delas e na sua dependência que me situarei diante do problema da súmula vinculante.

2 Minha primeira convicção é a de que o Direito, algo produzido pelo homem para atender a uma exigência básica da convivência social, tem sua razão de ser na necessidade de se compor impositivamente os conflitos de interesses que se configurem nas relações sociais. Os homens prescindem do Direito para objetivar sua liberdade, mas dele dependem para viabilizá-la na sua convivência. Consequentemente, indissociável do Direito é o valor segurança. O homem, ser temporal, tem consciência do tempo vivido (o passado irrecuperável) do tempo que vive (o presente) que já contém nele, como pulsão, o tempo que será vivido, o futuro, imprevisível e incontrolável, por não submetido a nenhum determinismo absoluto. Para escapar à angústia dessa incerteza do amanhã, procura utilizar-se de meios que a minimizem, dos quais o de maior significação é o compromisso. Consiste ele na fundada esperança de que o prometido hoje será realidade amanhã, o que torna Page 2 possível sobrevivermos, confiantes, convivendo Um dos fiadores dessa fé, e instrumento indispensável para fazê-la realidade, é o Direito, que atua de modo significativo, ainda quando subsidiariamente. O compromisso assegurado pelo Direito é um compromisso de matriz social, cujo conteúdo são as expectativas compartilhadas pelo grupo, expressas tanto sob a forma costumeira, hoje inadequada, ou no mínimo insuficiente, quanto formalizadas por escrito como preceitos de caráter geral, socialmente legitimados em sua obrigatoriedade e previamente objetivados, que se particularizarão e concretizarão ao serem aplicados aos casos concretos.

3 - Se o compromisso é exigência permanente, o conteúdo desse compromisso é contingente e variável, dependente de circunstâncias as mais diversas no tempo e no espaço, submetido ao constante impacto das necessidades humanas e conseqüente pressão que determinam, com vistas a serem satisfeitas. Assim, a par do valor segurança, de que o Direito não pode ser dissociado, há o imperativo de sua permanente necessidade de adequação à realidade social sobre que opera, isto é, impõe-se, também, sua abertura, seu dinamismo, sua não estratificação. Segurança e abertura interagem, buscando assegurar a conduta eleita como socialmente a mais desejável em determinado momento histórico e em determinado espaço político.

A segurança (no sentido de uma ordem social com estabilidade e alguma previsibilidade) não pode, entretanto, prescindir, para que se torne efetiva, de um mínimo de aquiescência dos dominados e da redução, ao máximo, da possibilidade de sua resistência a quanto prescrito. Donde se buscar a solução dos conflitos com um grau, mínimo que seja, de satisfação dos governados, para que se faça possível a paz social. Esta é a dimensão (ética) de justiça do Direito

4 - Outra convicção com que opero ao pensar juridicamente é a de que o comportamento humano, em sua gênese, não tem matrizes jurídicas. Os homens agem movidos pelas necessidades que experimentam, tanto naturais quanto culturais (desejos).e para satisfazê-las adotam comportamentos e utilizam-se de meios os mais variados, institucionalizados ou não. Prescindem, para tanto, do Direito, que normalmente ignoram e não mentalizam no momento de seu agir. Dele somente cuidam, porque necessário, quando indispensável a compreensão jurídica da conduta, com vistas à prevenção ou solução de conflitos de interesses. Isso nos leva a concluir carecerem o Direito e, por via de conseqüência, seus operadores, de função conformadora do comportamento individual ou social dos homens. Mesmo quando alguma lhe seja reconhecida, será ela débil e fragmentária, incapaz de se revestir de relevância maior, revelando-se, quando isso é tentado, disfuncional e opressora. Não se pode pedir ao Direito, por conseguinte, mais do que lhe é dado realizar. E só lhe é possível emprestar segurança e alguma previsibilidade à convivência social decidindo conflitos mediante um processo previamente institucionalizado, operando com expectativas compartilhadas pelo grupo social, com o que contribui para consolidar e operacionalizar um sistema de produção de bens e satisfação de necessidades, institucionalizado mediante certa organização política., que lhe dão conteúdo e lhe ditam o destino. A história não se faz com o Direito nem por ele, sim em decorrência da dinâmica Page 3 dos confrontos políticos, na sua interrelação com as opções econômicas, cabendo ao Direito apenas debuxar a face do poder político institucionalizado e realizar, em situações de conflito, o quanto de satisfação das necessidades humanas o sistema de poder viabiliza. O Direito, por conseguinte, antes de ser um agente conformador da convivência social, é, e fundamentalmente deve sêlo, um instrumento assegurador dessa convivência, que logra realizar em virtude da impositividade que lhe empresta o poder político institucionalizado, ao qual se vincula e do qual depende necessariamente. Sem poder institucionalizado não há impositividade e sem impositividade não há Direito. Lembraria, aqui, o dizer de Bobbio : só o poder cria o direito e só o direito limita o poder. Correto, pois, afirmar-se que a matriz do Direito é o conflito, e sua destinação o resolver conflitos impositivamente, isto é, com segurança, nos limites e pelo processo politicamente predeterminados.

Conclusão necessária - não há um Direito ideal, modelo, arquétipo, em cuja realização estamos empenhados. Há um sistema jurídico dentro do qual atuamos e em sintonia com o qual atuamos. Todo Direito é socialmente construído, historicamente formulado, atende ao contingente e conjuntural do tempo e do espaço em que o poder político atua e tem a dimensão de justiça que a real correlação de forças na sociedade possibilita.

5 - Meu pensar jurídico também é informado pela convicção de que o Direito inexiste como objeto da Natureza sendo algo produzido socialmente pelos homens, não de forma irracional e anárquica, sim mediante um processo politicamente institucionalizado. No nosso tempo, em nossa cultura ocidental e em nosso país, ele é produzido mediante um processo constitucionalmente regulado e compatível com o Estado de Direito Democrático. Irrelevantes as avaliações críticas a que tal sistema de governo possa e deva ser submetido. O que nos cumpre é reconhecer que está constitucionalmente institucionalizado e, nos termos em que isso foi feito, só nos cabe, enquanto operadores do Direito, ajustarmo-nos a ele.

A convivência humana não se dá, outrossim, segundo uma ordem predeterminada e necessária, antes se revela, também ela, como algo construído pelo homem, fruto, em sua dimensão mais significativa, de deliberações motivadas por uma complexa gama de interesses, insuscetíveis de serem colocados geneticamente como disciplinados pelo Direito, ao qual se reserva, exclusivamente, como já acentuado, a tarefa reguladora da solução de conflitos social ou individualmente irresolvidos Daí termos afirmado que ele não está na matriz do comportamento humano, representando apenas uma parte da ética, não a própria ética, que o ultrapassa e inclui. Assim sendo, ao Direito não cabe a função de informar e conformar, diretamente, o comportamento humano, em sua dimensão social, sim e exclusivamente a de solucionar os conflitos que decorram dessa convivência e escapem à composição pelos próprios interessados.

6 - Necessário aprofundar um pouco os fundamentos da reflexão que acabamos de formular tão sinteticamente. Com esse objetivo, valer-nos-emos do pensamento de Luhmann. Falar de sociedade, diz ele, é falar de sistema, de ordem social. E como a ordem social é possível ? Para ele, o problema que é a Page 4 origem da gênese e da manutenção da ordem social se configura sob a égide de dois conceitos estreitamente ligados : complexidade e dupla contingência. Por "complexidade" se compreende o conjunto de todos os acontecimentos possíveis. Desenha-se, assim, o campo ilimitado dos mundos possíveis Essa complexidade remete a duas idéias. De um lado, um mundo de possibilidades, que não é um mundo real e para sê-lo se fez necessário que o acaso permitisse a decantação de um desses mundos possíveis, para transformá-lo em mundo real. Por outro lado, o campo ilimitado das possibilidades que se denomina "complexidade", concebe-se conceitualmente como caos e não como cosmos. Quando se faz possível uma certa ordem nessa infinitude, reduz-se a complexidade e a sociedade começa a existir É nessa idéia de redução da complexidade, como processo social permanente, que Luhmann situa o motor da evolução dos sistemas sociais.

Complexidade, entretanto, não significa apenas evolução, ela está presente no começo de toda ordem, na origem de toda interação social. Se pensamos uma situação originária de contato entre dois indivíduos, sobre o pano de fundo dessa complexidade não...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT