Da superação do paradigma mecanicista à ascensão do paradigma ecológico

AutorAna Paula Baroni Fiorin
Páginas237-249

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Introdução

Os problemas contemporâneos1 atinentes à sustentabilidade da vida humana na Terra têm suscitado inúmeras indagações e reflexões sobre a relação da humanidade com o planeta até o momento, e sobre como deve a humanidade proceder a partir da tomada de consciência desses problemas globais.

O comportamento humano calcado em uma visão de mundo que preconiza unicamente o progresso material, baseado em um conhecimento fragmentado da realidade, tem provocado catástrofes naturais que põem em xeque tal forma de pensar e agir. O paradigma norteador de tal conduta baseia-se em uma forma de pensamento que concebe o mundo como uma máquina, sendo a ciência e a tecnologia usadas para dominar a natureza e extrair dela o máximo.

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Ocorre que a crise ecológica resultante desse modo de vida humano faz surgir uma nova visão de mundo, um novo paradigma. Essa nova visão, dita ecológica ou sistêmica, vê o mundo como uma rede, superando, assim, o reducionismo do pensamento anterior. Os seres humanos são apenas um elemento constitutivo da teia da vida (CAPRA, 2006a).

Como resultado da tomada de consciência de que o mundo é algo muito maior do que a soma de fenômenos isolados, a mudança de paradigma implica a mudança de valores, bem como da própria atitude dos seres humanos em relação a si mesmos, aos outros seres humanos e ao meio ambiente.

Nesse sentido, dividem-se as observações - para efeito de compreensão -, no presente ensaio, na análise das premissas do paradigma mecanicista, na realização do mesmo procedimento quanto ao paradigma ecológico e, por fim, na tentativa de compreensão da perspectiva ética do paradigma ecológico, que implica a própria percepção ecológica do mundo.

1 O paradigma mecanicista

O conhecimento, como ensina Edgar Morin (2007), atua por seleção de dados; ou seja, une aqueles dados considerados relevantes e rejeita, disjunta, os dados que não são importantes. Essa seleção é efetuada de acordo com “paradigmas”, definidos por Morin como “princípios ‘supralógicos’ de organização do pensamento”, sendo que, no mais das vezes, não há ciência de que a visão das coisas depende deles (2007, p. 10).

A visão de mundo que imperava na Europa antes de 1500 era orgânica e se caracterizava, segundo Capra, pela “interdependência dos fenômenos espirituais e materiais e pela subordinação das necessidades individuais às da comunidade” (2006b, p. 49). Nos séculos XVI e XVII, no entanto, tal visão foi substituída por uma concepção de mundo como máquina. Tal desenvolvimento foi impulsionado pelas mudanças na física, na astronomia e na matemática (Revolução Científica), e se baseava, principalmente, no método descritivo matemático da natureza, de Francis Bacon, e no método analítico, de Descartes (CAPRA, 2006b). A visão mecanicista, também chamada de “reducionista” ou “atomística” (CAPRA, 2006a, p. 33), dá ênfase às partes em detrimento do todo.

Assevera Capra (2006b) que, na Antiguidade, os cientistas tinham objetivos integrativos, visando compreender a ordem natural e o desenvolvimento da vida de modo harmonioso com ela. Por corolário, os cientistas tinham uma postura ecológica2; com Bacon, a ciência passou a visar à subjugação da natureza; dela, o máximo deveria ser extraído3 em benefício da humanidade (CAPRA,Page 239 2006b). A ciência, assim, deve ser útil e aplicável à realidade da vida: “Conhecer a natureza é, portanto, aumentar o poder do homem de se tornar senhor das coisas” (VILLEY, 2005, p. 593). O reflexo da aplicação do método experimental na seara jurídica é que o fim do direito não é o justo, mas o útil; o direito, para Bacon, consiste nas leis positivas (VILLEY, 2005, p. 596).

A mudança da concepção orgânica para a concepção mecânica foi, nas palavras de Capra, “iniciada e completada por duas figuras gigantescas do século XVII: Descartes e Newton” (2006b, p. 52).

Descartes visualizou uma ciência da natureza baseada em princípios de certeza, os quais dispensavam demonstração. A ciência, para ele, era matemática. Descartes expôs seu método de raciocínio na obra “Discurso do método”. O método cartesiano é fundado na dúvida; duvida-se de tudo o que é passível de dúvida, até atingir algo de que não é possível duvidar, “a existência de si mesmo como pensador” (CAPRA, 2006b, p. 54), expressada na frase “cogito, ergo sum”.

O método de Descartes baseava-se em quatro preceitos, a saber:

O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, foi o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir (DESCARTES, 1983, p. 37-38, grifos nossos).

A despeito das contribuições4, o método analítico de Descartes provocou uma atitude de reducionismo na ciência, consistente na “[...] crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes” (CAPRA, 2006b, p. 55). Disso resultou que, por muito tempo, a missão do conhecimento científico foi a de “dissipar a aparente complexidade dos fenômenos a fim de revelar a ordem simples a que elesPage 240 obedecem” (MORIN, 2007, p. 05). Contudo, a simplificação acaba mutilando as realidades e os fenômenos, em vez de clarificá-los (MORIN, 2007).

Consoante Morin, os princípios de “disjunção, de redução e de abstração”, que baseiam o método cartesiano, constituem o “paradigma de simplificação”, cujas consequências perniciosas se fizeram sentir a partir do século XX (2007, p. 11).

A separação entre ciência e filosofia, aduz Morin (2007), isolou uns dos outros a física, a biologia e as ciências do homem, sendo que, para corrigir tal disjunção, foi preciso reduzir o complexo ao simples, o que implicou uma hiperespecialização dos conhecimentos e a fragmentação das realidades. A missão do conhecimento científico, consoante o mesmo autor, era “desvelar a simplicidade escondida por trás da aparente multiplicidade e da aparente desordem dos fenômenos” (2007, p. 59).

No mundo ocidental, os reflexos da divisão cartesiana entre mente e matéria5, expressa no cogito, podem ser vislumbrados no fato de os seres humanos se reconhecerem como “egos isolados” existentes “dentro” de corpos; na atribuição, ao trabalho intelectual, de maior valor do que o conferido ao trabalho manual; no consumismo desenfreado na busca de um “corpo ideal”; no fato de os médicos não considerarem o aspecto psicológico das doenças e os psicoterapeutas não considerarem o aspecto físico dos pacientes (CAPRA, 2006b, p. 55).

Com a mecanicização da ciência, ocorreu, na expressão de Capra, uma “sanção científica” para a exploração desmedida da natureza (2006b, p. 56). Na Idade Média, quando imperava a concepção orgânica da Terra, violar a natureza era considerado uma violação ética6. Após, quando a natureza foi considerada umaPage 241 máquina, passou a viger o entendimento de que ela deveria ser controlada e dominada, como concebiam Bacon e Descartes (CAPRA, 2006b).

A estrutura conceitual desenvolvida por Descartes tornou-se realidade com Newton, que sintetizou as obras de Copérnico e Kepler, Bacon, Galileu e Descartes, fornecendo, assim, “uma consistente teoria matemática do mundo, que permaneceu como sólido alicerce do pensamento científico até boa parte do século XX” (CAPRA, 2006b, p. 56). As leis de Newton, porque universais, “pareciam confirmar a visão cartesiana da natureza”; “o universo newtoniano era, de fato, um gigantesco sistema mecânico que funcionava de acordo com leis matemáticas exatas” (CAPRA, 2006b, p. 59).

Newton unificou as tendências do método empírico (indutivo), de Bacon, e do método racionalista (dedutivo), de Descartes, desenvolvendo um método no qual a ciência passou a se basear a partir de então (CAPRA, 2006b, p. 59). O espaço e o tempo são absolutos, não dependem de fatores externos, e o universo é uma grande máquina criada por Deus, regida por leis divinas (CAPRA, 2006b). Newton, então, comprovou a concepção mecanicista do mundo introduzida por Descartes (CAPRA, 2006a). O racionalismo cartesiano e o universo newtoniano difundiram-se rapidamente no século XVIII, de modo que esse período é chamado de Iluminismo (CAPRA, 2006b).

Nessa época, destacou-se a figura de Locke, o qual desenvolveu uma concepção da sociedade a partir de seus indivíduos, estudando, primeiro, a natureza humana individual; após aplicou os princípios dela resultantes a problemas de ordem...

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