Taxa e preço público: por uma reavaliação do conceito de tributo e definição das espécies tributárias

AutorFlorence Haret
CargoDoutoranda pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo
Páginas126-144

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1. Definição do conceito de tributo

A legislação tributária brasileira se preocupou em enunciar um conceito de tributo. Segundo o art. 3° do CTN:

Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

A definição legal, contudo, deixa dúvidas, traz repetições desnecessárias e, por isso mesmo, em determinados casos é ambígua e vaga. Paulo de Barros Carvalho revelou sua ambiguidade enunciando que a palavra pode denotar distintos conjuntos de entidades tal como relação jurídica, direito subjetivo, dever jurídico, quantia em dinheiro, norma jurídica e, como prefere o Código Tributário Nacional, a relação jurí-dica, o fato e a norma que juridiciza o fato.1 Contudo, pondere-se que a imperfeição do conceito legal de tributo não se encontra na pluralidade de acepções que significa mas, mais que isso, na indeterminabilidade pela doutrina tradicional dos critérios imprescindíveis para todas espécies tributárias e sua verificação na diversidade das formas e situações (contextos) em que os tributos se apresentam no direito nacional.

É bem verdade que o caráter semântico plural de todo palavra é algo próprio da linguagem. Deste modo, todo vocábulo se apresenta potencialmente ambíguo e vago. Porém, a pluralidade sígnica, em si mesma considerada, não entrava o processo comunicativo. Na maioria das vezes, é perfeita-

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mente possível comunicar-se e fazer-se compreendido ainda que todas palavras tenham mais de um sentido. O contexto e o próprio fato comunicacional colaboram na identificação de seu sentido na dinâmica do discurso. O problema impera quando estes são insuficientes para fixar a significação precisa do termo. Não fica claro o conteúdo que se deve dar à palavra. Surge então a ambiguidade. Em outros momentos, não sabemos os exatos limites do campo de abrangência semântica de determinado vocábulo. Desconhecemos ao certo se sua aplicabilidade é possível para este ou aquele caso, ainda que, em certa medida, sabemos o seu significado. Assim impera a vagueza. Ambiguidade e vagueza do conceito de tributo vêm a tona na determinação das espécies tributárias, e, mais ainda, no dissociar entre taxa e preço público. Eis que o tema pede maiores comentários.

O art. 3o do CTN preceitua relevância significativa em três critérios no conceito de tributo: (i) ser compulsório; (ii) ter cará-ter pecuniário; e (iii) não constituir sanção de ato ilícito. Em outros termos, todo tributo institui norma que tem por antecedente um fato necessariamente lícito que, uma vez ocorrido e posto em linguagem competente das provas, dá ensejo a uma relação jurídica obrigacional. Imposta pela Lei compulsoriamente, a obrigação tributária implica no dever do contribuinte de dar algo em pecúnia ao Estado, valor este quantificado pela base de cálculo e alíquo-ta. Eis os sentidos compulsório, pecuniário e de fato lícito, próprios de toda forma exa-cional.

Agora, a despeito de parecer hialina a explicação, tais critérios em determinadas situações podem ser assumidos com mais de um sentido. Exemplificando: a condição de compulsoriedade viria da lei? E em assim afirmando, seria tida por compulsória a cobrança de preço público em única via de acesso a determinada cidade e/ou região? Este critério abarcaria um sentido de compulsoriedade pragmática ou se restringiria apenas àquele significado impos-to por lei? As dúvidas significativas instauram a ambiguidade e vagueza do termo, inapto por si só para nos dar limites precisos na fixação das espécies tributárias. E o que foi feito com o critério compulsoriedade poderia muito bem ser produzido com o elemento pecuniariedade e a condição de não constituir sanção.

Esses e outros debates são aquilo que nos leva a repensar cada um dos fatores es-truturantes do tributo e revê-los segundo as imposições contextuais em que as figuras tributárias se apresentam no direito brasileiro. Assim, pretende-se neste trabalho, redefinindo os próprios conceitos dos critérios distintivos adotados, redimensionar as características inerentes a toda figura tributária, para, ao fim e ao cabo, localizar esta abordagem na diferenciação entre taxa e preço público. Nada melhor para iniciar tal empreendimento que a identificação das espécies tributárias segundo uma concepção normativa.

2. Identificação das espécies tributárias

Sabemos que as normas no direito são homogêneas sintaticamente e heterogêneas no âmbito semântico. Exatamente por esta razão é que o estudo normativo das espécies tributárias, assegurado pela forma jurídica de toda unidade de direito, é um ponto de partida seguro e que nos fornece o dado preliminar para uma análise dogmática do tema.

Diversas são as classificações das estruturas normativas no direito. Bem se vê que dividir em classes é tarefa que não se submete aos valores verdade e falsidade, mas, sim, pode se apresentar mais ou menos útil para aquele que se debruça sobre o assunto. Dentre as classificações que me parecem servir a este estudo encontram-se aquelas que dividem as normas tributárias em (i) em sentido estrito2 e amplo;3 em (ii)

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regra de estrutura4 e de conduta;5 e, por fim, em (iii) norma primária6 e secundária.7 Esses três empreendimentos classifi-catórios permitem localizar o núcleo do direito tributário em termos normativos, fazendo insurgir a regra-matriz de incidência tributária.

Com base nas classificações normativas acima admitidas, firmemos que a regra-matriz é norma jurídica tributária em sentido estrito, uma vez que institui direta-mente sobre o tributo, criando uma hipótese no antecedente e uma relação jurídica obrigacional no consequente. Em instituindo obrigação, é norma de conduta que prescreve, ao contribuinte, um dever de pagar (conduta) em pecúnia tributo devido. É norma primária, tendo em vista que diz não constituir sanção de ato ilícito. Por fim, é proposição jurídica geral e abstrata: abstrata, por prever hipótese de incidência enunciando elementos de ação, tempo e espaço; e geral, por se dirigir a todos os agentes compositivos daquele sistema jurídico, fixando os termos pessoais e quantitativos da relação jurídica em termos gene-ralizantes. Eis redefinidos em termos normativos os critérios enunciados pelo art. 3o CTN.

Tomando com ponto de partida esta forma nuclear do direito tributário, perceberemos que toda espécie de tributo tem sua regra-matriz, de modo que é um mecanismo seguro para uma primeira aproximação desse tópico. É a partir da regra-matriz que as espécies tributárias vão se apresentando aos nossos olhos. O CTN, em 1966, procedeu em seu art. 5° determinação dos tributos em três hipóteses: impostos, taxas e contribuições de melhoria. Ao assim proceder, restringiu o exame apenas segundo as imposições do fato antecedente da regra-matriz, como se depreende da leitura dos enunciados abaixo:

Art. 16 do CTN. "Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer ativida-de estatal específica, relativa ao contribuinte".

Art. 77 do CTN. "As taxas (...) têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição".

Art. 81. "A contribuição de melhoria (...) é instituída para fazer face ao custo de obras públicas de que decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada e como limite individual o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado".

Conforme sua vinculação ou não com uma atividade estatal específica, o tributo pode ser imposto, na ausência de ato do Estado; ou taxa e contribuição de melhoria, em havendo atuação do Poder Público. Nesta última, dependendo do tipo de atividade produzida, será taxa, quando essa atividade pública for exercício de poder de polícia ou prestação específica e divisível de serviço público; ou contribuição de melhoria, quando houver obra pública e valorização do bem privado. Numa atitude de isolamento da regra-matriz de incidência, percebeu no fato antecedente a existência ou não de atividade do estado, assumindo

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uma classificação tripartite exclusivamente intranormativa, i.e., observando-se tão só o enunciado antecedente da regra-ma-triz de incidência tributária. Nesta, os elementos úteis ao agrupamento em classes são critério material e base de cálculo, fa-tores que sozinhos afirmam, confirmam ou infirmam as espécies tributárias em termos intranormativos. Os critérios determinantes são (i) caráter vinculado8 ou não vinculado9 e, com base na resposta deste, em sendo tal vinculação (ii) direta10 ou indire-tamente.11

Com o advento da Carta Magna, em 1988, e suas posteriores modificações pelo Poder constituinte derivado, passou-se a admitir critérios que fugiram aos limites da proposição nuclear do tributo. Com isso afirmaram-se novas espécies com vista (i) na restitutividade dos valores cobrados e (ii) na destinação específica para o qual são criados. Extrapolando a regra-matriz dos tributos, o Texto Maior trouxe novos tipos tributários que se definem com base na inter-relação da norma nuclear do tributo com outras regras, tal como a que institui a destinação específica ou que impõe o dever de restituição dos valores cobrados do contribuinte. Assim, com a Planta de 88 uma nova classificação se estabeleceu, levando em conta justamente esta conexão entre normas, ou melhor, este vínculo...

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