Globalização, Inovação Tecnológica e Inclusão Social: Acesso aos Medicamentos

Autor1. Salete Oro Boff - 2.Isabel Cristina Brettas Duarte
Cargo1. Pós-doutoranda em Direito pela UFSC, Doutora em Direito pela UNISINOS. Pesquisadora do CNPQ. Advogada. - 2. Mestranda em Direito e Acadêmica do Curso de Letras Espanhol pela URI, pesquisadora na área de Propriedade Intelectual, Advogada.
Páginas125-138

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1 Considerações iniciais

No contexto globalizado1, toma relevância a questão da inclusão social, sob os mais diversos prismas. Acerca do avanço tecnológico é imprescindível refletir sobre os benefícios desse progresso e a possibilidade de acesso das vantagens. Tal preocupação é ainda mais pertinente no tocante à questão dos medicamentos. Tem-se observado que os países emergentes são menos beneficiados quando a questão são medicamentos ou melhoria na saúde pública, questões estas que englobam globalização, propriedade intelectual e acesso aos medicamentos, mais especificamente, no tocante ao patenteamento de medicamentos, de sorte que se busca um ponto de equilíbrio entre a proteção da invenção e a transferência das benesses.

A intenção desse artigo não é outra, portanto, senão a de integrar o conhecimento do tema com o debate, fazendo o liame entre mundo globalizado, inovação tecnológica e inclusão social, mais especificamente em relação ao acesso aos medicamentos. Da mesma forma, tecendo um quadro de como esse processo vem se desenvolvendo no Brasil e enaltecendo sua relevância em nível mundial,Page 126bem como sua importância no panorama ibero-americano, como forma de reflexão e comunicação sobre as contribuições dos países ibero-americanos, assim como a integração dos diversos tipos de conhecimento e legislação que se tem a respeito do tema proposto.

2 O ambiente da globalização

O termo globalização porta, por si só, alta carga de imprecisão conceitual. Para Barral, trata-se de “processo de internacionalização dos fatores produtivos, impulsionado pela revolução tecnológica e pela internacionalização de capitais”4. Não se limita, contudo, meramente o fenômeno global às características econômicas.

Nessa tessitura, todas as forças produtivas básicas, como o capital, a tecnologia e a divisão transnacional do trabalho deixam de respeitar fronteiras geográficas, históricas e culturais, multiplicando suas formas de articulação e contradição. Vivenciando a sociedade global, a época da eletrônica conta com os recursos da informática que a tornam, ao mesmo tempo, visível e incógnita, presente e presumível, indiscutível e fugaz, real e imaginária, uma vez que articulada por emissões, ondas, mensagens e símbolos, redes e alianças, que “tecem os lugares e as atividades, os campos e as cidades, as diferenças e as identidades, as nações e as nacionalidades”5.

Na globalização, o signo das transformações extrapola todas as fronteiras, amplia-se e envolve os diversos aspectos da vida moderna, do individual ao coletivo, do social ao político, do nacional ao supranacional. Para Klaes, ela se apresenta como “um fenômeno de porte único, que há muito tempo transcendeu os limites da economia mundial, marco de sua gênese, tornando-se presente e determinante em todas as áreas em que o conhecimento e o desenvolvimento humano se processam”6.

Isentando a globalização de seus significados menos nobres, assinala Franco que não se pode “esvaziá-la de suas outras dimensões – tão relevantes quanto à econômica; nem desprezar ou minimizar as transformações por ela provocadas em todas as áreas do conhecimento humano; nem, sobretudo, omitir o seu caráter de irreversibilidade”7. Aduz, porém, não haver possibilidade de repor os termos tempo e espaço na “mesma escala do passado, nem reconstruir a soberania do Estado-nação nos moldes de tempos anteriores. A equação tempo-espaço, mercêPage 127da revolução tecnológica no campo da informação e da comunicação, foi cumprimida de tal forma que não importa onde, nem quando, um fato ocorra para que adquira, de pronto, visibilidade mundial”.

O lado perverso da globalização, contudo, tem sido, até por sua notória evidência, o mais analisado e censurado por juristas, sociólogos e estudiosos em geral. Lamenta Santos que com ela novas enfermidades se instalam, enquanto velhas doenças, tidas como extirpadas, retornam de forma triunfal: “A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e se aprofundam males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção”8.

Os novos recursos técnicos devem ser direcionados para beneficiar o ser humano: idealizar uma sociedade voltada para o futuro, colocando perspectivas como critérios de observação: é necessário antecipar para diminuir a possibilidade de frustração9.

Se não se pode mudar o processo de globalização, ainda que dele não se goste, dada a sua irreversibilidade, cabe a todos e a cada um criar mecanismos e formas de agir que conduzam à minimização de seus perversos efeitos e a um necessário equilíbrio, em benefício da pessoa e da sociedade10.

Dessas breves reflexões, insere-se que a globalização se constitui no fenômeno, complexo e abrangente, norteador da sociedade internacional contemporânea. Trata-se, ademais, de processo com caráter irreversível – no sentido de que segue um curso natural, de difícil alteração –, atingindo direta ou indiretamente todas as pessoas em todos os quadrantes do planeta. Embora presente, de forma mitigada, em alguns momentos da História, consolidou-se e assumiu proporções inimagináveis nas últimas décadas. Ele teve início, a exemplo da maioria dos movimentos e construções humanas, a partir do viés econômico, mas logo se ampliou a outros setores, como o comercial, o político, o social e o cultural. A globalização, presentes seus benefícios, necessita ser vista como um desafio a ser superado. Não se duvida, outrossim, que o ser humano, cujo potencial de superação de obstáculos costuma se agigantar quando maiores são os desafios, encontrará dentro do próprio processo global meios para reencetar seu justo destino. E pilares para esse viés benfazejo e promissor foram trazidos pela própria globalização, nele avultando a inovação tecnológica, como possibilidade de inclusão social.

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3 Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual

A Propriedade Intelectual diz respeito à apropriação do intelecto, do imaterial, ou até mesmo das idéias. É a proteção do investimento, sendo que a expressão propriedade intelectual, internacionalmente aceita a partir da Conferência de Estocolmo, em 1967, engloba basicamente a tutela das obras advindas do esforço intelectual humano com duas grandes divisões: de um lado, os Direitos Autorais, atinentes às obras de natureza estética ou artística, e de outro, o Direito da Propriedade Industrial, tendo o Direito do Inventor como base (criações de natureza técnica ou industrial). A esses grandes ramos, acrescentam-se as cultivares, a proteção de dados e o sigilo e a topografia de circuitos integrados.

Um sistema de propriedade intelectual permite incentivar a geração de novas tecnologias, produtos, processo e oportunidades comerciais, promove um ambiente legal que aumenta a segurança e a confiança das empresas, incentivando as transações comerciais. Dessa forma, “um regime eficiente de propriedade intelectual é um fator primordial para atrair tecnologia, levando ao crescimento econômico nacional”11, e também representa uma fonte de informações sobe o estágio da técnica, além de servir como instrumento de planejamento e estratégia da indústria e do comércio.

Assim, depreende-se que a proteção à Propriedade Intelectual é um meio de promover inovação, transferência e disseminação de tecnologia, sendo fundamental no processo de desenvolvimento de um país, “no sentido de promover a disseminação de informações, o estímulo e a diversificação da produção e o surgimento de novas tecnologias, (...) gera riquezas e garante empregos, favorecendo a criação de novos bens e serviços, que contribuem para melhorar as condições de vida dos povos”12. Por isso, não pode ser considerada um fim, mas um meio para obtenção de benefícios.

Em nível internacional, a Propriedade Intelectual está regulada pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), órgão vinculado às Nações Unidas, que se originou como gestor da Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial e de Berna para Proteção das Obras Literárias e Artísticas. Embora o papel desempenhado pela OMPI, os países industrializados passam a exigir revisão dos tratados, com o fim de dotá-los de mecanismos para impor deveres e sanções aos países membros, assim como criar mecanismos para a resolução de controvérsias. Após muitas negociações e discussões, mesmo não tendo ocorrido um real consenso entra as partes, no Acordo GATT da Rodada Uruguai foi criado o TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights - Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), juntamente com a Organização Mundial do Comércio (OMC).

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Esses órgãos são responsáveis mundialmente pelas regras de Propriedade Intelectual e Comércio Internacional entre os países, sendo que o conteúdo da Rodada Uruguai foi ratificado pelo Parlamento Brasileiro pelo Decreto n.º 1.355 de 30/12/1994, o qual vigorou desde 1º de janeiro de 1995, e desde então as regras sobre Propriedade Intelectual e as do comércio mundial sofreram vertiginosas mudanças.

E hoje, mais do que nunca, vivemos numa era em que se atribui importância ao capital do conhecimento, trazendo a necessidade da conscientização de que “na sociedade da inteligência, a plena satisfação das faculdades de cada um é o objetivo de todos”13, na qual a produção é posta a serviço do desenvolvimento humano, e não o contrário, de forma que o desenvolvimento das nações passa pelo conjunto de conhecimentos agregados pela propriedade intelectual.

O valor de um conhecimento é inteiramente ligado à capacidade de monopolizar o direito de se...

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