Tempo e constituição

AutorLeonel Severo Rocha
CargoDoutor pela EHESS-Paris. Professor colaborador do programa de pós-graduação - Mestrado em Direito da URI, coordenador do PPGD-Unisinos, Pesquisador I do CNPq.
Páginas177-198

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Introdução: tempo social e direito

O tempo é a sucessão contínua de instantes nos quais se desenvolvem eventos e variações das coisas. Para Teoria dos Sistemas é a observação da realidade a partir da diferença entre passado e futuro. A Constituição é a forma estruturada nas sociedades diferenciadas características da modernidade para a operacionalização/observação das relações entre o Direito e a Política. Pretendo nestePage 178ensaio apontar alguns lugares diferentes de observação da evolução do Direito a partir de sua inserção na idéia de Tempo Social.

A definição do tempo está ligada à forma de sociedade em que vivemos (Claude Lefort, Cornelius Castoriadis). Nessa perspectiva o tempo é contextual (espacial). A concepção de tempo dominante na dogmática jurídica é originária da filosofia de Kant e da física de Newton e, portanto, das estruturas tradicionais de regulação social. Pode-se dizer assim que o tempo determina o tipo de estruturação temporal do Direito e que o Direito, por sua vez, auto-reproduzindo-se nesta lógica, contribui com a manutenção dessa temporalidade instituída. A Constituição é uma das conquistas evolutivas dessa organização do tempo.

No entanto, no início do século XXI, surgiu uma nova forma de sociedade, que se pode chamar, conforme os autores, de globalizada, pós-moderna, modernidade-reflexiva, modernidade líquida, que tem como uma das características fundantes a dissolução da noção de tempo/espaço tradicional. Portanto, uma das possibilidades de se pensar, de se entrar nessa nova forma de sociedade, poderia ser tentada a partir da idéia de tempo: o que é o tempo dentro dessa nova forma de sociedade? E onde é que o Direito contribui para a construção do tempo? E qual seria o papel da Constituição?

1 Tempo: de Saussure a Kelsen

A teoria a respeito da dimensão temporal dominante no Direito é o normativismo, que impõe na dogmática jurídica a concepção de tempo de Kant/ Newton. Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito, 1960), um neo-kantiano, vai usar essa noção de tempo e espaço, por meio da noção de âmbito de validade. Esta perspectiva kelseniana aproxima-se, epistemologicamente, daquela do chamado estruturalismo. Ferdinand Saussure, um lingüísta, demonstra que toda produção de sentido, do significado, é uma relação de valor. E o valor é temporal.

Para tanto, Saussure elabora uma teoria semiológica dos signos a partir da oposição língua/fala. Essa dicotomia, língua/fala, é que produz o sentido: a línguaPage 179seria o sistema, a fala seria a seleção atual. Essa relação língua/fala é uma relação temporal porque só podemos entendê-la desde uma outra a relação entre diacronia/ sincronia, que é uma outra relação com o presente e a história. Isso quer dizer que a produção de sentido é uma produção temporal. Não existe comunicação sem tempo, ou seja, Saussure amplia as possibilidades de sentido neo-kantianas. Como exemplo, num dos momentos mais brilhantes do Curso de Lingüística Geral, se explica, do ponto de vista estrutural e neo-kantiano, como se produz a comunicação num certo momento e num certo tempo, por meio das relações sintagmáticas e associativas da comunicação. As relações sintagmáticas mostram que os sons, os fonemas, para terem sentido, precisam de um tempo de articulação, de estruturação, para serem formados. Por exemplo: no tempo sintagmático, quando se tem quinze minutos para falar, nesse tempo somente se pode falar, emitir, os sons se podem emitir durante quinze minutos sintagmaticamente. Porém, ao mesmo tempo, podem-se, em cada sintagma, em cada signo, em cada palavra, transmitir relações associativas. Então se diz linearmente, sintagmaticamente, algumas coisas, mas, associativamente, sempre se diz muito mais. Ou seja, a relação sintagmática/associativa, do ponto de vista temporal, diz associativamente muito mais que o sentido literal. E é por isso que sempre um texto diz muito mais do que se pretende e menos do que se pensa.

A semiologia saussureana foi utilizada pela primeira vez, em relação ao Direito Penal, já em 1980, por Rosa Maria Cardoso, para desmascarar o mito do princípio da legalidade, mostrando que este somente seria possível se as palavras da lei se reduzissem aos sintagmas, às palavras escritas. Para a validade de princípio da legalidade, não existiam junto com essas palavras relações associativas. Ora, se há relações associativas, a interpretação é sempre mais ampla. Sem princípio da legalidade, o tempo está livre e a Lei pode retroagir. Desse modo, percebe-se que há um tesouro, uma riqueza quase infinita na língua, e um limite espacial na fala, que somente é ultrapassado levando-se em consideração simultaneamente as oposições da semiologia e da lingüística. Essas oposições, como a existente entre diacronia/ sincronia que estão em Saussure, são muito semelhantes, respeitadas algumas especificidades, as idéias de estática e dinâmica no normativismo jurídico kelseniano.Trata-se de uma concepção de presente e uma concepção de história que estariam, ao mesmo tempo, conjugadas na produção de sentido do Direito.

Assim, não se pode entender o Direito do ponto de vista normativistaPage 180sem uma estática e uma dinâmica, sem o presente da história. Mas tudo isso ainda é originário de Kant, sendo aplicações estruturais de Saussure e de Kelsen, de neokantismo ao Direito. Na atualidade, o grande problema é que essa noção de tempo e espaço kelseniana, saussureana, não funciona mais. Essa noção de tempo e espaço não é mais válida, porque estamos numa outra forma de sociedade globalizada. A concepção de tempo e espaço de Newton, que se mantinha, filosoficamente, com de Kant, é uma categoria que permitiria duração, permitiria antecipação: tempo para pensar, tempo para refletir, tempo de continuidade. O fato é que depois de Albert Einstein, que também não é o culpado por ser o mensageiro, a Teoria da Relatividade vai destruir a noção de tempo linear, abrindo lugar para as teorias da indeterminação e da imprevisibilidade. Isto é, não há mais o tempo do antes e do depois, do passado e do futuro.Assim deixa de ter sentido toda epistemologia montada numa racionalidade ligada à idéia de tempo e espaço newtoniano. Por tudo isso, então é necessário procurar-se como alguns chamam o ponto de mutação, pensar um novo tempo, um tempo da relatividade. Nesse novo tempo, tudo é instantâneo, não existe mais a separação rígida entre passado, presente e futuro. O tempo é imediato, impedindo que a Teoria do Direito possa se desenvolver dentro dos padrões normativistas kelsenianos. Por isso, a importância das teorias sistêmicas para a observação da complexidade do Direito atual.

2 Matriz pragmático-sistêmica

Deste modo, a forma de sociedade globalizada implica uma reconstrução necessária do que é o Direito, que exige, entre outras dimensões, uma observação diferenciada do tempo. Existem muitos caminhos na epistemologia. Neste texto, partese da matriz sistêmica (pragmático-sistêmica) ligada à teoria dos sistemas sociais. A matriz sistêmica aplicada ao Direito tem como autor principal Niklas Luhmann (Soziale Systeme, 1984), mas existem também outros importantes autores, que podem ser chamados, respeitadas as especificidades de sistêmicos sociais: Teubner, Giddens, Beck, etc. O fator preponderante da matriz sistêmica é o fato de que ela permite observações de segunda ordem, que apontam para uma série de questões completamente diferentes das perspectivas tradicionais ligadas à noção clássica daPage 181Física do Tempo/Espaço. A matriz sistêmica parte da idéia de tempo construído dentro da Complexidade e do Caos. A teoria dos sistemas é uma teoria originariamente ligada desde Talcott Parsons (Sistema Social,1976) aos processos de tomada de decisões. Todo processo de tomada de decisões está vinculado a uma noção de tempo. Decidir é fazer. Decidir é participar do processo de produção do futuro, por isso decidir é produzir tempo. Decidir na teoria dos sistemas também é produzir uma diferença. A decisão é, portanto, fundamental para o entendimento de qualquer relacionamento mais direto com o problema do tempo. Neste texto, salientar-se-á, notadamente, para análise do Direito, as concepções de Niklas Luhmann e François Ost, desde uma interpretação própria.

A teoria dos sistemas sociais de Luhmann é altamente complexa, exatamente porque pretende observar uma sociedade igualmente hipercomplexa. Para Luhmann, o sentido possui três dimensões: material, social e temporal. Para Luhmann, em sua primeira fase existe no Direito uma tensão temporal em suas funções: 1) em relação ao passado, a função de “estabilização de expectativa” e, em relação ao futuro, a função de “guia de comportamento”. Porém, em sua segunda fase, a teoria luhmaniana parte da diferença fundamental entre sistema e ambiente. Esta diferenciação exige para sua compreensão o conhecimento de, no mínimo, outras quatro grandes teorias: a teoria dos meios de comunicação, pois sem o domínio do conceito de comunicação não se pode entender a noção de sistema social; a teoria da evolução, desde uma perspectiva crítica da mudança social; a teoria da diferenciação, verdadeiro motor da sociedade; e a teoria da autodescrição, caracterizada por uma perspectiva chamada de autopoiética (Gunther Teubner,1989). Nesta linha de idéias, percebe-se que a matriz sistêmica indica para a observação da sociedade e do Direito problemas e saídas que até então não eram possíveis de serem pensados dentro do Direito dogmático. O tempo passa a ser uma redução/contrução de complexidade.

3 O direito como sistema autopoiético...

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