Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988

AutorProf. Ingo Wolfgang Sarlet
CargoJuiz de Direito no RS, Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha
Páginas1-17

Juiz de Direito no RS, Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da PUC-RS, onde também leciona a disciplina "Constituição e Direitos Fundamentais" no Mestrado em Direito.

Page 1

1 - Considerações preliminares:

Escrever sobre a saúde e sua proteção na ordem jurídico-constitucional constitui, sem dúvida, desafio para todos os que se ocupam do tema, seja pela sua relevância, seja pela miríade de aspectos que suscita, razão pela qual, desde logo, impõe-se uma delimitação do âmbito do presente estudo. Assim, registra-se que o ponto central a ser versado nesta breve análise diz com a posição que a saúde ocupa no ordenamento jurídico pátrio, na condição de direito e dever fundamental positivado na Constituição Federal de 1988, de tal sorte que, num primeiro momento, buscaremos caracterizar o direito à saúde como direito (e dever) fundamental da pessoa humana na ordem jurídica brasileira, especialmente na Constituição Federal de 1988, já que desta premissa resultam importantes conseqüências no que diz com a eficácia e efetividade desse direito à saúde, temática que se constitui no objeto principal de nossa reflexão, na segunda parte deste ensaio.

Por derradeiro, convém registrar que renunciamos a qualquer pretensão de aprofundamento e erudição acadêmica, na esperança de que possamos contribuir de alguma forma para a discussão e, quem sabe, até mesmo fornecer algum subsídio para a compreensão e, quem sabe, superação pelo menos de algumas das inúmeras dificuldades que se colocam para todos os que se ocupam com o problema da saúde neste nosso país, pelo menos no que diz com a sua dimensão jurídica. Page 2

2 - A saúde como direito e dever fundamental na constituição federal de 1988
2. 1 - O direito à saúde e sua fundamentalidade formal e material

Por mais estranho que possa parecer, muitas pessoas ainda questionam a razão pela qual um direito à saúde (como, de resto, boa parte dos direitos sociais) encontra-se previsto na Constituição. Da mesma forma, há quem questione até mesmo o fato de advogados, promotores, defensores públicos e juízes estarem a se ocupar com esta temática, que, por certo, a prevalecer este ponto de vista, deveria ser da competência apenas dos médicos, do governo, dos hospitais ou das empresas de planos de saúde?!

Certamente não é este o entendimento que se irá sustentar neste ensaio, o que, de resto, já se pode inferir das notas introdutórias. Em verdade, tais questionamentos esbarram na elementar constatação de que a nossa Constituição vigente consagrou expressamente a saúde como direito fundamental da pessoa humana, decisão que, à evidência, deve ser levada a sério. Vale ressaltar, neste contexto, que praticamente ninguém questionou, ao menos desde 1787, isto é, desde que surgiram as primeiras Constituições escritas, na acepção contemporânea do termo, sobre o fato de a propriedade (que chegou a ser tida inclusive como direito natural) ocupar um lugar de destaque na Constituição. O mesmo se aplica à liberdade de ir e vir e ao instituto processual do habeas corpus, assim como às liberdades de associação, de reunião e à proteção da intimidade, da vida privada, do sigilo das comunicações e a privacidade do domicílio. Cuida-se, em todos os casos, de valores e bens jurídicos contemplados nas Constituições (ao menos naquelas que cultuam o Estado de Direito) há quase dois séculos.

Pois bem, bastou fossem contemplados nas Constituições os assim denominados direitos sociais, especialmente a educação, a saúde, a assistência social, a previdência social, enfim, todos os direitos fundamentais que dependem, para sua efetividade, do aporte de recursos materiais e humanos, para que se começasse a questionar até mesmo a própria condição de direitos fundamentais destas posições jurídicas.

Consoante já sinalado, por mais que se queira advogar a causa dos adversários da constitucionalização de um direito à saúde (como, de resto, dos demais direitos sociais), a nossa Constituição vigente, afinada com a evolução constitucional contemporânea e o direito internacional, não só agasalhou a saúde como bem jurídico digno de tutela constitucional, mas foi mais além, consagrando a saúde como direito fundamental, outorgando-lhe, de tal sorte, uma proteção jurídica diferenciada no âmbito da ordem jurídico-constitucional pátria.

Assim, a saúde comunga, na nossa ordem jurídico-constitucional, da dupla fundamentalidade formal e material da qual se revestem os direitos e garantias fundamentais (e que, por esta razão, assim são designados) na Page 3 nossa ordem constitucional.1 A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional positivo e, ao menos na Constituição pátria, desdobra-se em três elementos: a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também a saúde), situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, cuidando-se, pois, de norma de superior hierarquia; b) na condição de normas fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado para modificação dos preceitos constitucionais) e materiais (as assim denominadas "cláusulas pétreas") da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe o artigo 5, parágrafo 1, da Constituição, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares. A respeito de cada um destes elementos caracterizadores da assim denominada fundamentalidade formal, notadamente sobre o seu sentido e alcance, ainda teremos oportunidade de nos manifestar.

Já no que diz com a fundamentalidade em sentido material, esta encontra-se ligada à relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional, o que - dada a inquestionável importância da saúde para a vida (e vida com dignidade) humana - parece-nos ser ponto que dispensa maiores comentários.

Por tudo isso, não há dúvida alguma de que a saúde é um direito humano fundamental, aliás fundamentalíssimo, tão fundamental que mesmo em países nos quais não está previsto expressamente na Constituição, chegou a haver um reconhecimento da saúde como um direito fundamental não escrito (implícito), tal como ocorreu na Alemanha e em outros lugares. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que protege o direito à vida e assegura o direito à integridade física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção prevista para a vida e integridade física.

2. 2 - Breves notas sobre a positivação de um direito fundamental à saúde no plano internacional e no direito constitucional comparado

Mesmo que em caráter meramente ilustrativo, vale a pena - até mesmo como intuito de demonstrar que a nossa ordem constitucional, neste contexto, anda afinada com a evolução internacional - trazer algum dados a respeito da consagração no plano jurídico-positivo de um direito fundamental à saúde tanto no direito internacional, quanto no direito constitucional comparado.

No direito internacional, coube à Declaração Universal da ONU, de 1948, o pioneirismo no que diz com a previsão expressa de um direito à saúde. Com efeito, nos seus artigos 22 e 25, a Declaração dispõe, aqui de forma resumida, que a segurança social e um padrão de vida capaz de assegurar a Page 4 saúde e o bem-estar da pessoa humana são direitos humanos fundamentais. Posteriormente, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil, dispõe, no seu artigo 12, a respeito do direito de desfrutar do mais alto grau de saúde física e mental. Também na Convenção dos Direitos da Criança, já com a dimensão específica voltada para a questão da saúde da criança e do adolescente, bem como na Convenção Americana dos Direitos Humanos, de 1989, ambas igualmente ratificadas pelo Brasil e incorporadas ao nosso direito interno, encontramos nova referência ao direito à saúde.

No plano do Direito Constitucional comparado, já são diversas as Constituições que contém previsão expressa do direito à saúde, como direito fundamental. É o caso, por exemplo, das Constituições da Argentina, Paraguai, Uruguai, Portugal, Espanha, Holanda, Itália, Grécia e França, apenas para citar as mais conhecidas. Assim, parece-me que o nosso Constituinteconforme já destacado - andou em boa companhia, pelo menos no que diz com a matéria ora versada.

Aliás, das considerações tecidas até o presente momento, já se poderá ter por não justificadas as inúmeras e severas críticas assacadas contra a nossa Constituição, especialmente quando se trata de alegar que ela decretou a ingovernabilidade de nosso país, transformando-o virtualmente numa espécie de "Leviathan" indomável...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT