A monetização do trabalho, antinomia constitucional e a base de cálculo do adicional insalubre

AutorFrancisco Milton Araújo Júnior
Páginas272-284

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“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados de Deus. Porque, como as aflições de Cristo abundam em nós, assim também a nossa consolação abunda por meio de Cristo.”

(II Coríntios — Capítulo 1, v. 3/5)

1. Trabalho insalubre: noções gerais

A palavra insalubre é definida por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como “não salubre; que origina doença; doentio”1.

O trabalho insalubre pode ser conceituado como o desempenho de atividades laborais, de natureza física ou mental, em ambiente que efetivamente possibilite a ocorrência de dano à saúde do trabalhador.

Sebastião Geraldo de Oliveira conceitua o labor insalubre como “aquele que afeta ou causa danos à saúde, provocando doenças, ou seja, é o trabalho não salubre, não saudável. Muitas enfermidades estão diretamente relacionadas e outras são agravadas pela profissão do trabalhador ou as condições em que o serviço é prestado, o que possibilita a constatação do nexo entre o trabalho e a doença”2.

A legislação brasileira considera como “atividades insalubres ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixada em razão da

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natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos” (art. 189, da CLT).

O conceito fixado pelo texto celetista estabelece dois requisitos básicos para o reconhecimento do labor insalubre: a exposição do trabalhador a agentes nocivos à saúde e a violação dos limites de tolerância.

Os agentes nocivos à saúde também são estabelecidos pela Norma Regulamentadora (NR) n. 15 (Portaria n. 3.214/78, de 8 de junho de 1978), que classifica como agentes físicos3 (ruídos, ruídos de impacto, calor, radiações ionizantes, pressões hiperbáricas; radiações não-ionizantes; vibrações; frio; umidade), agentes químicos4 (substâncias químicas e poeiras minerais) e agentes biológicos5 (microorganismos, vírus e bactérias).

Destaca-se que a mencionada estruturação dos agentes nocivos pelo ordenamento jurídico brasileiro em agentes físicos, químicos e biológicos, é criticada por Octavio Bueno Magano6 e por Sebastião Geraldo de Oliveira7, uma vez que é omissa quanto aos agentes psicológicos8 (estresse contínuo, pressão mental, dentre outros).

Sebastião Geraldo de Oliveira comenta que “o Ministério do Trabalho adotou conceito ultrapassado de saúde, porquanto se limitou a regulamentar o adicional de insalubridade para os danos ao corpo físico do trabalhador, quando o conceito de saúde adotado pela OMS abrange o completo bem-estar físico, mental e social. Não alcançou, assim, a ‘insalubridade psíquica’, cujos efeitos não podem ser ignorados”9.

Analisando a NR-15, Eddy Bensoussan e Sérgio Albieri10 também classificam as atividades insalubres em dois grandes grupos: de avaliação qualitativa11 (quando a caracterização das atividades e operações insalubres depende exclusivamente da inspeção técnica no local de trabalho, haja vista que o Ministério do Trabalho e do Emprego não fixou limites de tolerância para os agentes agressivos) e de avaliação quantitativa12 (quando a caracterização das atividades e operações insalubres depende da análise quantitativa da exposição do trabalhador a agentes nocivos à saúde).

O limite de tolerância é delimitado pela NR-15, tópico 15.1, que estabelece: “Entende-se por limite de tolerância, para os fins desta Norma, a concentração ou intensidade máxima ou mínima, relacionada com a natureza e o tempo de exposição ao agente, que não causará dano à saúde do trabalhador, durante a sua vida”.

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A conjugação, portanto, da exposição do trabalhador a agentes nocivos à saúde e a violação dos limites de tolerância proporciona o reconhecimento pela norma jurídica brasileira do labor insalubre.

2. A monetização do trabalho insalubre e a antinomia constitucional

O desempenho do labor em condições de risco, com a exposição aos agentes nocivos à saúde física e mental (trabalho insalubre), às atividades que potencialmente podem causar a mutilação ou a perda da vida do obreiro (trabalho perigoso), ao excessivo esforço físico e/ou mental (trabalho penoso), vem sendo tratado diferentemente nos diversos ordenamentos jurídicos do mundo.

Sebastião Geraldo de Oliveira13, analisando o direito do trabalho comparado, observa que “o legislador adotou três estratégias básicas diante dos agentes agressivos: a) aumentar a remuneração para compensar o maior desgaste do trabalhador (monetização do risco);
b) proibir o trabalho; c) reduzir a duração da jornada. A primeira alternativa é a mais cômoda e a menos inteligente; a segunda é a hipótese ideal, mas nem sempre possível, e a terceira representa o ponto de equilíbrio cada vez mais adotado”.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio da Convenção n. 15514,

“Segurança e Saúde dos Trabalhadores”, assumiu a posição de defesa da redução das condições de risco, incentivando a adoção de políticas de prevenção de acidentes e danos à saúde do trabalhador.

No plano internacional, Guillermo Cabanellas de Torres15 comenta que na legislação da Argentina há “limitación de la jornada de trabajo por esta causa de insalubridade (§ 626) y la proibición de horas extraordinarias (§ 627)”.

No Uruguai, Francisco de Ferrari afirma que o reconhecimento do labor em condições insalubres “estabelece limitaciones especiales de la jornada de trabajo, la cual, en ningún caso, poderá ser mayor de seis horas ... beneficia al trabajador recuperado de su enfermidad con normas que aseguran su readmisión al establecimiento ... fija em trinta horas la duración máxima de la semana de trabajo para los obreros que presten servicios durante la noche”16.

Sebastião Geraldo de Oliveira destaca que “o Código do Trabalho do Irã, de 1990, consagra proteção mais ampla para os trabalhos penosos e insalubres: limita a jornada a 6 horas por dia ou 36 por semana, proíbe a realização de horas extras em tais trabalhos e aumenta as férias anuais para cinco semanas nessas atividades. Também o Código do Trabalho da Hungria, de 1922, limita a jornada dos trabalhos insalubres em seis horas

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diárias, proíbe o trabalho extra em tais atividades e prevê a concessão de férias extraordinárias para os que realizem trabalhos subterrâneos ou estejam expostos a radiações ionizantes”17.

No Brasil, o legislador pátrio preferiu optar pela monetização do risco, criando adicionais para compensar o maior desgaste e as lesões à saúde do trabalhador.

A primeira norma que introduziu a monetização do risco no Brasil foi o Decreto-Lei
n. 399, de 30 de abril de 1938, que legitimou o labor em condições insalubres mediante a percepção do adicional de insalubridade nos percentuais de 10% (dez por cento), 20% (vinte por cento), e 40% (quarenta por cento) do salário mínimo de referência.

O trabalho em condições perigosas também foi legitimado pela criação do adicional de periculosidade, no valor correspondente a 30% (trinta por cento) do salário do trabalhador, por meio da Lei n. 2.573, de 15 de agosto de 1955.

A Lei Orgânica da Previdência Social (Lei n. 3.80718, de 26 de agosto de 1960) aprofundou o alicerce da monetização do risco do trabalho no Brasil com a instituição da aposentadoria especial para os trabalhadores que trabalhassem 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos em serviços penosos, insalubres ou perigosos.

Constata-se, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro vem incentivando duplamente o desempenho das atividades de risco, ou seja, estimula o labor em condições de risco com o aumento da remuneração (adicionais) e a concessão precoce da aposentadoria.

Cabe destacar que o objetivo da norma, ao fixar os adicionais de risco, seria de aumentar a remuneração do trabalhador, permitindo o melhoramento da qualidade de vida do obreiro e da sua família, como também de onerar a produção e, pedagogicamente, forçar o empregador a eliminar os elementos nocivos à saúde do trabalhador.

Na prática, as empresas, em razão da necessidade de grandes investimentos em tecnologias que reduzam e/ou eliminem as condições de riscos, preferem eternizar o pagamento do adicional de risco em detrimento da segurança, higiene e saúde do trabalhador.

Verifica-se que os efeitos prejudiciais da monetização das atividades de risco afetam a segurança, a higiene e a saúde do trabalhador no plano individual homogêneo, coletivo e difuso, conforme estabelece o art. 81, parágrafo único, da Lei n. 8.078/90.

Constata-se, por exemplo, que a legitimação do labor em condições de risco mediante o pagamento de adicionais a determinados trabalhadores de uma única empresa e representados por um único sindicato, dependendo do contexto fático-jurídico, pode possibilitar o aparecimento de enfermidades (físicas ou psíquicas), mutilações ou mortes dos trabalhadores, e, por conseguinte, proporcionar a violação do interesse individual homogêneo [atinge quantidade delimitada de trabalhadores, porém não abrange toda a categoria profissional, e decorre de uma lesão de origem comum (atividades de risco)], do interesse coletivo [quando os trabalhadores atingidos formam um grupo (determinados

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setores da empresa) ou mesmo toda a categoria de classe (quando a empresa for única na base territorial do sindicato em questão), sendo todos ligados por uma mesma relação “jurídica-base” (o desempenho da atividade de risco possibilitou a violação das garantias constitucionais dos trabalhadores, como a dignidade humana, o direito à vida, o direito à saúde e o direito ao meio ambiente do trabalho...

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