O Trabalho Autônomo na Reforma Trabalhista e a Fórmula Política da Constituição Federal de 1988

AutorPaulo Roberto Lemgruber Ebert
Páginas13-26

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1. Introdução

A Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, apodada de Reforma Trabalhista, apresenta-se como uma nítida manifestação do fenômeno descrito por Alain Supiot como law shopping, a compreender, sob a ótica do Estado, a busca pela redução do custo da mão de obra com vistas à obtenção de vantagens na precificação de seus produtos no mercado internacional, bem como à atração de investimentos produtivos e, da parte dos empresários, a escolha daqueles ordenamentos jurídicos trabalhistas menos onerosos no que concerne aos custos com o pessoal.

Almeja-se, em síntese, com a Reforma Trabalhista, não apenas a propalada simplificação das relações individuais e coletivas entre empregadores e empregados, mas também o reposicionamento do País nos indicadores relacionados ao custo da mão de obra, por intermédio da precarização das condições laborais e da flexibilização da remuneração e da duração do traba-lho, em nítida contraposição à diretriz-chave consagrada na Declaração da Filadélfia da OIT, a propalar que “o trabalho não é uma mercadoria”.3

Nesse contexto, a Lei n. 13.467/2017 trouxe, ao lado da oficialização daquelas já conhecidas formas precárias de arregimentação de mão de obra (terceirização de atividades-fim, contratos a tempo parcial e contratos temporários) e da implementação de novas modalidades de contratação flexível (com especial destaque para o contrato de trabalho intermitente), a possibilidade de generalização da contratação de trabalhadores autônomos, mesmo sob o regime de continuidade e de exclusividade.

Assim, de acordo com a redação conferida pela Lei
n. 13.467/2017 ao art. 442-B da CLT, o singelo preen-chimento dos requisitos formais para a configuração do contrato de prestação de serviços, previstos nos arts. 593 a 609 do Código Civil, bastaria para afastar o enquadramento do trabalhador no conceito jurídico de empregado, a constar do art. 3º da CLT.4

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Com isso, o dispositivo legal em referência estaria não apenas a permitir, no extremo, a formulação de contratos de prestação de serviços de duração indeterminada e com exclusividade entre trabalhadores que se auto-intitulam autônomos e seus tomadores de serviços, em uma tentativa de oficializar a burla ao ordenamento trabalhista e tributário.

Sob tal ótica, seria possível estabelecer, por exemplo, contratos de prestação de serviços a submeterem o aludido autônomo a jornadas superiores aos limites estabelecidos no art. 7º, XIII, da Constituição Federal, com remuneração inferior ao salário mínimo e sem as demais garantias constitucionais asseguradas à gene-ralidade dos empregados, tais como o décimo terceiro salário (art. 7º, VIII), o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (art. 7º, III), as férias anuais com o respectivo adicional (art. 7º, XVII), as licenças maternidade e paternidade (art. 7º, XVIII e XIX), entre outras.

Diante da amplitude semiótica conferida à redação do novel art. 442-B da CLT pela Lei n. 13.467/2017 e tendo em vista, igualmente, a aparente abertura por ela conferida à arregimentação de trabalhadores individualmente considerados por intermédio da formula-ção de simples contratos de prestação de serviços, faz-se mister averiguar se tal exegese encontra respaldo nas diretrizes hermenêuticas emanadas da Constituição Federal, cujos enunciados condicionarão a tarefa inter-pretativa concernente ao desvelamento do sentido e do alcance de todos os demais diplomas do ordenamento jurídico.5

Para tanto, a resposta a tal indagação deve partir de uma abordagem mais ampla do que aquela limitada ao singelo cotejo entre o dispositivo infraconstitucional a ser interpretado e os artigos da Constituição Federal diretamente relacionados à matéria nele versada, em direção a uma análise mais ampla e completa, a permitir o desvelamento de seu sentido e alcance à luz dos valores que sintetizam e conferem identidade ao diploma constitucional.

Nesse sentido, a análise do novel art. 442-B da CLT a ser formulada no presente estudo buscará desvelar o sentido e o alcance inerentes a este último, não apenas a partir do cotejo de seu enunciado com os preceitos constitucionais diretamente relacionados à tutela do trabalho, elencados no art. 7º, da Carta Magna, mas sim a partir de uma análise à luz da fórmula política dispersa ao longo dos dispositivos, a denotar o substrato ideológico que confere identidade à lei maior e que vincula objetivamente todo o ordenamento jurídico.

2. A fórmula política inerente à constituição federal de 1988 e seu elemento solidarizante Valor social do trabalho e da livre iniciativa, proteção do trabalhador, função social da empresa e vínculo de emprego como padrão constitucional para as relações de trabalho

O conceito de fórmula política é, na acepção dos autores europeus que o formularam originalmente, o dado substancial a conferir identidade a uma determinada constituição. Compreende-a, nas palavras de Pablo Lucas Verdú “a expressão ideológica juridicamente organizada em uma estrutura social” que sintetiza as características organizativas e axiológicas adotadas pelo Estado em seu documento fundante.6

A fórmula política de uma determinada constituição é, portanto, o resultado final da equação que envolveu, no processo constituinte, as distintas concepções ideológicas a respeito da organização da estrutura pública, da delimitação dos poderes e competências, dos objetivos e finalidades institucionais a serem colimados pelo Estado e dos direitos fundamentais a serem assegurados aos cidadãos.7

No caso da Constituição Federal brasileira, o entrechoque das forças políticas dos mais distintos matizes que tomaram parte na Assembleia Constituinte

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de 1987/88 produziu um texto que, em matéria de objetivos institucionais e de direitos fundamentais, buscou harmonizar as garantias individuais clássicas exercitáveis face à ação do Estado (p. ex: autonomia privada, liberdade de expressão, direito à intimidade, à privacidade, à propriedade etc.) com a concretização de relevantíssimas finalidades sociais a guardarem conexão intrínseca com os direitos a prestações concretas dependentes do concurso do próprio Estado e dos particulares.8

Assim, na senda das constituições editadas após a Segunda Guerra Mundial, a Carta brasileira de 1988 bebeu assumida e diretamente da fonte do constitucionalismo dirigente para a moldagem do Estado e da sociedade que se pretendiam após a redemocratização do País. Da leitura de seu art. 3º, percebe-se de forma nítida a preocupação com a elaboração de um programa voltado para a superação das mazelas sociais e econômicas historicamente relacionadas ao cotidiano pátrio, sendo justamente esse o motivo para inserir-se a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, a erradicação “da pobreza e da marginalização”, a redução das “desigualdades sociais e regionais”, bem como a promoção “do bem de todos” no rol dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Como elemento imprescindível para os progressos cultural e material dos indivíduos, o trabalho humano – e, naturalmente, o emprego – foram objeto central de preocupação do legislador constituinte. Nesse sentido, a fórmula política da Carta de 1988 passou a ser integrada pelo ideal de solidarismo surgido, historicamente, como resultado direto das lutas empreendidas pelos obreiros contra o poder desmesurado do capital nas relações de trabalho e que conduziu, posteriormente, ao reconhecimento textual das posições jurídicas titularizadas pelas classes menos favorecidas com vistas a lhes conferir, efetivamente, a cidadania plena.9 (grifo nosso).

Justamente em razão de tal concepção incorporada, como visto, à fórmula política da Constituição Federal de 1988, o art. 7º desta última, ao positivar o princípio da proteção do trabalhador, vislumbrou a promoção do equilíbrio de forças nas relações laborais e, em especial, a limitação, em nome de bens jurídicos titularizados pelos obreiros (tais como a integridade física e o próprio direito à subsistência), do livre exercício da autonomia privada e da fruição absoluta do direito à propriedade, em deliberada contraposição à lógica individualista e reificadora a caracterizar o liberalismo novecentista.10

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Pode-se dizer, nesse sentido, que a Constituição Federal de 1988 incorporou em sua fórmula política a essência do conteúdo histórico-institucional inerente ao direito do trabalho, cuja evolução conceitual nas principais democracias industrializadas do Ocidente – e, em certa medida, também no Brasil – conferiu a tal ramo do direito uma identidade própria, sintetizada por Héctor-Hugo Barbagelata sob a expressão particularismo do direito do trabalho, caracterizada, segundo o referido autor uruguaio, pelo reconhecimento jurídico de uma desigualdade de forças que perpassa os atores individuais no plano da realidade, e que, dada a sua subsistência durante toda a duração da relação laboral, condiciona a elaboração e a compreensão do ordenamento trabalhista e restringe, por isso mesmo, a própria autonomia privada em nome da solidariedade coletiva.11

Tal concepção, desde a sua origem remota, partiu da premissa de que o indivíduo não é um ser isolado, alheio à coletividade, de modo que suas ações e omissões não se limitam nem se esgotam com a singela consecução de seus próprios interesses, afetando, colateralmente, todos aqueles que se situam ao seu redor, mormente quando o...

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