Trabalho infantil doméstico: até quando?

AutorMaria Zuila Lima Dutra
Páginas186-201

Page 186

Introdução

Este artigo é resultante de pesquisa que realizamos no Estado do Pará, onde a situação de muitas meninas1 subjugadas pelo trabalho doméstico não se difere essencialmente de outras regiões do Brasil e dos chamados países periféricos. Trata-se, como visto, de uma amostra localizada, demonstrativa de um fenômeno não exclusivamente paraense ou brasileiro.

Nosso país abriga ambientes de larga exploração infanto-juvenil e apresenta-se, ao mesmo tempo, como referência a países latino-americanos e de outros continentes, no combate às diversificadas formas de trabalho degradante impostas àqueles segmentos da população que ainda não atingiram a idade adulta.

O lado positivo dessa situação contraditória não retira do país a vergonhosa condição de ser o primeiro na exploração de crianças e adolescentes nas Américas e o segundo no mundo2. A constatação é do Fundo das Nações Unidas para a Infância — Unicef3 e das Organizações Não Governamentais — ONGs, ao debater a Convenção dos Direitos da Criança. Por que isso?

São problemas graves que desafiam as afirmações de cidadania e de dignidade tão solenemente inscritas em nossa Constituição, clamando a todos os segmentos organizados da sociedade para uma ação ampla e urgente, objetivando colocar definitivamente o Brasil no rol das nações civilizadas. Em decorrência dessa realidade, os operadores do Direito não podem permanecer apegados somente à letra descontextualizada e muitas vezes insensível da Lei. É óbvio que se faz imperativo conhecer o sentido autêntico da norma,

Page 187

mas dentro dos contextos em que se desenrolam os fatos sociais nos quais a norma é aplicada.

1. O problema e seu contexto no mundo contemporâneo

O trabalho de pessoas em tenra idade vem sendo repudiado desde os primórdios da humanidade, como descreve Ari Cipola4 dizendo que “no século 6 a.C., os judeus, de volta a Jerusalém após o exílio na Babilônia, já se insurgiam contra o destino de seus filhos, escravizados em troca de alimentos”.

No Brasil, a prática do trabalho infantil é um fenômeno histórico e tem suas raízes na época do descobrimento, pois os navios que aportaram nos portos brasileiros vinham carregados de crianças trabalhadoras. Por isso, somente a continuidade do movimento em defesa dos direitos da criança e do adolescente e de uma ação nacional integrada, mobilizando toda a sociedade no combate ao trabalho precoce, por meio de parcerias eficazes entre organizações governamentais e Não governamentais, e mesmo internacionais como a Organização Internacional do Trabalho — OIT e o UNICEF, serão capazes de proteger a população infanto-juvenil contra qualquer tipo de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão.

Neste momento, o desafio é demonstrar que todos os esforços contra o trabalho infantil e para promoção de igualdade entre gêneros e raças oferecem significativos benefícios às famílias, às comunidades e às sociedades.

Não se trata apenas de pais que querem e precisam do trabalho de seus filhos menores para o sustento de suas famílias, porque lhes é negado pelas políticas públicas o acesso aos meios que permitam garantir a satisfação de suas necessidades básicas.

Não se trata apenas de pais que têm no trabalho de seus filhos uma forma de afastá-los das más companhias, tirá-los do ócio, das ruas ou consideram o trabalho preferível a uma escola de má qualidade.

Trata-se, mais do que tudo, daqueles empregadores e intermediários que se utilizam do trabalho infantil porque lhes traz mais vantagens econômicas e os pequenos trabalhadores custam menos e são demitidos mais facilmente, além de serem mais hábeis para o exercício de certas atividades, enfim.

Convém ressaltar, dentro deste enfoque, a ratificação das Convenções ns. 138 (sobre idade mínima para admissão ao emprego) e 182 (sobre as piores formas de trabalho infantil)5, ambas da Organização Internacional do Trabalho — OIT, ratificadas pelo Brasil, que representam grandes avanços à efetiva erradicação do trabalho infantil e uma atitude positiva do poder público brasileiro.

Mas, para que as leis, normas, acordos e compromissos tenham maior eficácia, é necessário que penetrem na consciência dos brasileiros, que sejam compreendidas por

Page 188

todos indistintamente, ao lado da implementação de reformas estruturais que tornem dispensável o trabalho infantil, sob quaisquer formas e intensidades.

2. O direito de ser criança

Apesar de todos os esforços, o 3º Relatório Nacional Sobre Direitos Humanos constatou que o trabalho infantil no Brasil quase dobrou em quantidade no ano de 2006 e pouco mudou até 2008 (Relatório PNAD 2008).

O trabalho de meninas, igualmente como o dos meninos, está presente em todos os Estados brasileiros, retirando da criança a possibilidade de exercer suas atividades prioritárias que são: brincar e estudar
brincar e estudarbrincar e estudar
brincar e estudarbrincar e estudar.

O Brasil ainda registra 494.0026 crianças que estão submetidas à exploração no trabalho doméstico na casa de terceiros e ocupa o 3º lugar no mundo em trabalho infantil doméstico, de acordo com pesquisa efetivada pela OIT, ficando atrás somente da África do Sul e da Indonésia7.

Esses dados são mais preocupantes quando cruzados com os resultados de pesquisas efetivadas pelo Lumen Instituto de Pesquisa para a Organização Internacional do Trabalho nas cidades de Belém, Belo Horizonte e Recife. Nessa obra, constata-se que o trabalho infantil doméstico atinge em cheio as meninas (92,71%), majoritariamente as pardas e negras (74,7%), as quais ordinariamente provêm de famílias de baixa renda. Trata-se de um retrato cruel da discriminação social contra crianças pobres, do sexo feminino, pardas e negras (OIT, 2003, p. 49)8.

Oriundas de famílias cuja renda não lhes permite emergir da linha da pobreza, filhas de mães com baixa escolaridade e órfãs de políticas públicas de assistência social que lhes possibilitem priorizar os estudos e o gozo de sua infância, inúmeras crianças são atiradas ao mercado de trabalho, que as recebe de braços abertos, aniquilando-lhes o futuro de forma impiedosa.

Incontestável que algumas formas de trabalho infantil, antes defensáveis ou simplesmente aceitáveis, como o doméstico
como o domésticocomo o doméstico
como o domésticocomo o doméstico, hoje são intoleráveis devido ao conhecimento gerado sobre os danos físicos e mentais que causam às crianças.

3. Falsa solidariedade: pior forma de escravidão

A Convenção sobre os Direitos da Criança9 é considerada o instrumento de direitos humanos mais aceito em todo o mundo. Foi ratificada por 192 países, — incluindo o Brasil —, e contém a essência do tratamento que deve ser dispensado aos adolescentes e às crianças. Sem dúvida, um dos maiores abusos praticados contra os direitos dessas pessoas

Page 189

é a exploração do seu trabalho, em virtude das graves consequências que acarretam ao seu desenvolvimento físico, mental e psicológico, com reflexos no futuro da sociedade.

O que pode ser qualificado como trabalho infanto-juvenil? Segundo a legislação brasileira são consideradas crianças as pessoas com até doze anos incompletos, e adolescentes os indivíduos entre doze e dezoito anos incompletos. Assim, qualquer trabalho desenvolvido por integrantes dessa camada da população, que provoque estresse físico ou psicológico, a exemplo das atividades nas ruas ou em lugares inadequados, ou em situação de perigo físico ou mental, ou ainda na realização de serviços domésticos ou qualquer outra atividade que lhe retire o tempo para brincar e estudar, não pode continuar sendo aceito normalmente pela sociedade deste século XXI.

O Unicef10 estabelece que o trabalho infanto-juvenil adquire características de exploração quando envolve atividade em período integral; muitas horas de trabalho; atividade que provoque excessivo estresse físico, emocional ou psicológico; atividade e vida nas ruas em más condições; remuneração inadequada; responsabilidade excessiva; atividade que impeça o acesso à educação; serviço que comprometa a dignidade e a autoestima da criança, como escravidão ou trabalho servil e exploração sexual; atividade prejudicial ao pleno desenvolvimento psicológico.

Muito embora a 1ª Lei de proteção do trabalho infanto-juvenil no Brasil tenha sido editada em 1890, esta continuou sendo aceita por governos e pela sociedade até meados de 1980, quando a questão passou a ser percebida pela opinião pública. A grande modificação ocorreu entre 1994 e 1995, com a criação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, e com o surgimento de programas de renda mínima, como o Bolsa-Escola, em face das denúncias publicadas pela imprensa nacional e internacional.

Alguns debates têm sido travados em torno da distinção entre trabalho infanto-juvenil tolerado e não tolerado. A propósito, a Recomendação sobre Eliminação do Trabalho Infantil da OIT (junho 1997), preparatória sobre o tema na Assembleia Geral em 1998, destaca o combate às formas mais intoleráveis de exploração do trabalho de crianças e adolescentes. A Conferência de Oslo, ocorrida de 27 a 30 de outubro de 1997, editou uma Agenda de Ação, ressaltando as formas mais intoleráveis de trabalho. De igual modo, a Declaração da Assembleia Geral da OIT (de 1998), que foi submetida à de 1999, refere-se às piores formas de trabalho infantil (em suas diversas modalidades) que devem ter preferência no combate11.

Apesar de a sociedade...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT