As transformações do Estado e o necessário zelo pelos direitos humanos/fundamentais nas relações privadas

AutorLuis Carlos Drey
Páginas81-93

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Introdução

A humanidade nos últimos séculos1 tem percorrido uma trajetória tanto econômica como cultural que produziu para os estudiosos das ciências sociais um fenômeno político social nominado de globalização. Esse evento tem essa denominação em decorrência de sua própria característica existencial e dos efeitos pelos quais ele termina por atingir o objeto das ciências humanas, a sociedade. Portanto a globalização é em si mesma uma fase das relações entre os indivíduos do gênero humano (relação sociológica humana), em que os vários microssistemas sociais outrora existentes para o campo de estudo dos pesquisadores das ciências sociais estão entrando num processo de fusão, em que aquela pluralidade imensa de sistemas sociais analisados antigamente de forma apartada misturam-se entre si gerando um único e gigantesco elemento sistemático novo. É esse elemento que está transformando totalmente o objeto das ciências sociais, a sociedade. Destarte, a cada dia, todos os setores da vida humana são obrigatoriamente levados pelo impulso inexorável da chamada aldeia global, isto é, a economia, a política, a ciência e, numa expressão mais ampla – a própria cultura – passa a ter uma feição mundializada. É a internacionalização da experiência comunitária humana onde tudo em que o homem participa aparece contaminado pela substância multicultural do resto do planeta, inclusive e, principalmente, o direito, porque sendo este uma ciência social por excelência, é um dos primeiros a sentir as influências da globalização.

Assim, os conflitos concretos da sociedade hodierna vinculam-se também aos aspectos sociais e econômicos do mundo moderno. Há, portanto, grandePage 82 necessidade de que o operador do direito interaja com estas situações, pois com a correlação destes pode ele aferir com maior cautela e profundidade as interações havidas entre os sujeitos de direito nos últimos tempos. E qual a maior controvérsia existente hoje em relação ao fenômeno da globalização? A resposta com certeza é a discussão acerca das possibilidades de efetivação dos direitos fundamentais, os quais se apresentam em estágio sociologicamente mundializado.

O propósito deste artigo é, portanto, refletir sobre essas transformações, inclusive as do Estado e mostrar a necessidade de se zelar pelos direitos humanos/fundamentais nas relações privadas.

1 Direitos humanos/fundamentais e os operadores do direito frente à nova ordem mundial

Pela transitoriedade da vida social, sobretudo no conjunto de uma nova sociedade de massa marcada pelo progresso das técnicas de informática, que refletem um mundo fluido e fragmentado, é que se requer a busca constante de maneiras ao menos mais adequadas para a proteção dos homens e a mantença da sua dignidade, a função primordial do direito. De qualquer maneira, as novéis situações diferem-se in totum daquelas vivenciadas pela sociedade de outrora. Em virtude disso, se busca um direito completamente distinto capaz de regular tais acontecimentos até agora inéditos no plano fático.

Não obstante os reiterados textos relacionados ao tema dos direitos humanos/fundamentais, o assunto é palpitante e merece análise efetiva, no que tange a sua eficácia, pelos operadores do direito.

Como preleciona Ana Maria D’avila Lopes, “o estudo dos direitos fundamentais é, sem dúvida, um dos temas mais interessantes e importantes da teoria jurídica"2.

Assevera ainda a necessidade de rever os antigos conceitos jurídicos por causa das profundas alterações do Direito Constitucional nos últimos anos cujos inúmeros textos e obras publicadas referentes ao tema não devem ser interpretados como falta de assunto ou originalidade, mas destaca, sobretudo, como o reflexo da necessidade constante de debater um tema infindável, decorrência necessária da íntima ligação entre direito e sociedade.3

De qualquer forma, este viés, tido como pós-moderno, trouxe algumas benesses na comunicação e universalização de direitos. Mas, por outro lado, afeta o Estado, a Constituição e a soberania dos países, havendo, também, repercussões nas searas civilistas e nas próprias relações jurídicas interprivadas, direito civil e direito internacional privado.

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Convém, entretanto, trazer à baila a concepção de Pietro Perlingieri, em face da pertinência da sua exposição e que, de certo modo, resume bem a preocupação tão necessária de inserção do jurista à realidade social. Como salienta, existem novas relações, impensadas até pouco tempo atrás.4

O direito orienta-se em concepção voltada aos sujeitos de direitos em sentido lato. Os operadores do direito, por sua vez, não podem limitar-se às fontes primárias como as leis, uma vez que tal aferição poderá resultar inócua frente a tamanhas mudanças advindas dos fatores de mundialização dos negócios. Desta feita, devem os operadores do direito as respostas e quiçá soluções das controvérsias na teoria constitucional moderna, na equidade e finalmente nos valores da justiça social, multicultural de toda a civilização humana.

Essa construção teórico-jurídica deve valer-se de instrumentos hábeis, mormente com a sociologia, no contexto real e na aferição sistêmica e epistemológica da hermenêutica, esta na valoração do homem/sujeito, centro porquanto da relação jurígena e do Estado-Nação. Portanto, o direito e a economia, como todas as áreas do saber, influenciam-se reciprocamente, não podendo o jurista deixar de levá-los em consideração:

[...] O objeto da ciência jurídica é unitariamente a realidade concreta, os fatos concretos e a norma jurídica, fato e norma concretas que estão em continua dialética. A realidade não pode ser dividida, mas sim estudada unitariamente. Não há realidade econômica distante da realidade jurídica: igualmente não há realidade social separada da realidade jurídica, como também não há realidade ética ou religiosa divorciada da realidade jurídica. A realidade é uma, é unitária, e o seu aspecto (o seu perfil) nada mais é que um aspecto de realidade unitária. Por isto o Estado de Direito não pode se limitar ao estudo das leis. Os instrumentos da ciência jurídica, as noções, as definições, os conceitos não são fins em si mesmos, mas sim instrumentos adequados à realidade. Não existem instrumentos válidos em todos os tempos e em todos os lugares: os instrumentos devem ser construídos pelo jurista, levando-se em conta a realidade que ele deve estudar.5

De outro lado, para desde já iniciar uma compreensão mínima da globalização, é bom lembrar que os ideais universais do neoliberalismo, na metade do século vinte, assentaram-se na concepção de Friedrich August Haynek, jurista austríaco que defendia a supremacia das leis do mercado em face do Estado, insurgia-se com as ideias de justiça social, nitidamente preocupado com a liberdade individual. De modo geral, portanto, defendia o Estado Mínimo, relegando os direitos fundamentais dos cidadãos ao plano secundário.6 A teoria deste estudiosoPage 84 culminou por exercer uma imensa simpatia e grande fascínio para com os grandes setores capitalistas e logo se espalhou mundo afora.

De toda a sorte, a partir da crise do petróleo da década de setenta, instaurou-se a descrença de que o Estado Social pudesse atender todas as demandas reprimidas que advieram com a redemocratização política, pondo-se em cheque os pressupostos basilares do dirigismo estatal da sociedade.

A crise do Estado social foi aguçada pela constatação dos limites das receitas públicas para atendimento das demandas sociais, cada vez mais crescentes, tais como a garantia de direitos universais à saúde, à educação, à previdência social, à assistência aos desamparados, para citar-se algumas hipóteses que deviam ser suportadas pelo Estado. Destarte, os envelhecimentos populacionais, decorrentes dos avanços, das curas de doenças e das melhorias do saneamento básico ofertados à população, também demonstrou-se, sem embargo, contribuinte. Exsurgia, assim, uma crise para financiar a saúde e a previdência social, portanto os sustentáculos do Welfare State.7

Já o segundo fator – externo – causador da crise do Estado do bem-estar, se refere à marcha da transnacionalização e da globalização. O Estado se debilita na medida em que vai perdendo para o grande capital privado, setor de gigantesca potência política, o domínio sobre as variáveis que influem na economia; deteriora-se a sua capacidade de formulação e implementação de políticas públicas, de regulamentação e fiscalização do seu mercado interno, e, com isso, o seu poder de garantir a eficácia dos direitos sociais8 e, portanto, a sua soberania.

Enfim, após a exposição feita, vê-se que a globalização tem contribuído efetivamente para a revisão das conjecturas norteadoras da soberania, sendo inconciliáveis a realidade dos Estados contemporâneos àqueles conceitos pré-determinados que vigiam outrora. Muito embora a soberania permaneça adstrita à idéia de insubmissão, independência e de poder supremo juridicamente organizado, deve-se, hodiernamente, atentar para as novas realidades que impõem à mesma uma série de modificações conceituais, as quais o transformam, por vezes. De todo o jeito, é possível, sim, haver discordância da extensão, profundidade e rapidez do fenômeno, mas não da sua existência, como preleciona Carvalho.9

O Estado se debilita, na medida em que vem perdendo para o grande capital privado, setor de gigantesca potência política, o domínio sobre as variáveis que influem na economia, e com isso se deteriora a sua capacidade originária daPage 85 formulação e implementação de políticas públicas, de regulamentação e controle de seu mercado interno, o que resulta no enfraquecimento da implementação de direitos sociais.10-11

2 Os tratados...

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