O tratamento das questões de gênero no direito brasileiro e a repercussão do entendimento do stf sobre os direitos fundamentais das pessoas trans

AutorLiv Lessa Lima de Holanda e Marcos Ehrhardt Júnior
Ocupação do AutorMestranda em Direito Público pela UFAL. Servidora Pública da Justiça Federal de Alagoas/Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Páginas223-240
O TRATAMENTO DAS QUESTÕES DE GÊNERO
NO DIREITO BRASILEIRO E A REPERCUSSÃO
DO ENTENDIMENTO DO STF
SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DAS PESSOAS TRANS1
Liv Lessa Lima de Holanda
Mestranda em Direito Público pela UFAL. Servidora Pública da Justiça Federal de
Alagoas.
Marcos Ehrhardt Júnior
Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Direito Civil da UFAL. Professor
de Direito Civil e Direito do Consumidor do Centro Universitário CESMAC. Pesquisa-
dor Visitante do Instituto Max-Planck de Direito Privado Comparado e Internacional
(Hamburgo/Alemanha). Líder do Grupo de Pesquisa Direito Privado e Contempora-
neidade (UFAL). Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Diretor Nordeste
do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Membro do Instituto Brasileiro de
Direito de Família (IBDFAM) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade
Civil (IBERC). Advogado. E-mail: marcosehrhardtjr@uol.com.br.
Sumário: 1. Introdução; 2. Apontamentos sobre gênero e sexualidade; 3. A evolução dos di-
reitos relativos a questões de gênero no Brasil; 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275:
liberdade para mudar o registro sem mudar o corpo; 5. Recurso Extraordinário 845.779 SC:
pessoa trans e a polêmica do acesso aos banheiros; 6. Considerações nais; 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Pesquisa realizada pela Folha de São Paulo em agosto de 2016 divulgou que se
estima que haja mais de 500 mil transgêneros no Brasil2.
O transgênero, representado pela letra “T” da ampla rede de proteção LGBT por todo
o mundo, é a pessoa que não se identif‌ica com o padrão social de gênero masculino ou
feminino que lhe fora atribuído. Logo, transgênero é uma expressão guarda-chuva, que
compreende transexuais, travestis, intersexuais, não binários, andróginos, entre outros3.
1. Artigo publicado originalmente na Revista Brasileira De Direitos Fundamentais & Justiça, v. 12, n. 39, jul./dez. 2018,
p.217-240.
2. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Gêneros, transgêneros, cisgêneros: orgulho e preconceito. Disponível em:
www.ibdfam.org.br/artigos>. Acesso em: 1 jun. 2018.
3. SANCHES, Patrícia. Famílias trans no Brasil: o paradoxo da evolução de direitos e a epidemia transfóbica, Revista
IBDFAM: Família e Sucessões, vol. 22, Belo Horizonte: IBDFAM, p. 159-167, jul./ago. 2017, p. 159.
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Apesar do grande número de transgêneros vivendo no Brasil, nosso país é o quarto
mais violento do mundo para a população trans, se considerado o percentual por milhões
de habitantes, f‌icando atrás apenas de Honduras, Guiana e El Salvador.4
Segundo a ONG Transgender Europe (TGRu), só em 2016 foram registrados 144
assassinatos de pessoas trans. Entre 2008 e 2016, ocorreram 938 assassinatos de pessoas
trans no país5.
Muitas vezes, a violência acontece dentro da própria casa, por incompreensão da
família. Em 2014, no Rio de Janeiro, um pai espancou até a morte uma criança de oito
anos, para ensiná-la “a ser homem”. Alex vestia roupas femininas e rebolava enquanto
lavava a louça. Vanessa, também de 14 anos, recebeu ameaças de morte da própria avó
e foi estrangulada, em 2014, em Angélica (MS)6.
Pesquisa realizada pela revista Época aponta que a expectativa de vida das pessoas
trans é de apenas 35 anos, enquanto a do brasileiro médio é de 75 anos7.
Apesar de assustadores, esses números não representam novidade para essa parcela quase
invisível da sociedade brasileira, que precisa resistir a uma rotina de exclusão e violência.
A maioria das pessoas trans deixa a escola logo cedo, por ser vítima de humilhações
e violência nos locais de ensino. Também abandona as famílias por não encontrar nelas o
apoio necessário. A vida adulta não proporciona mais facilidades, pois muitos têm imen-
sa dif‌iculdade de conseguir trabalho formal, devido à discriminação e ao preconceito,
encontrando como alternativas de sobrevivência a prostituição e o tráf‌ico de drogas8.
A pesquisa da TGEu indica algumas razões para que este cenário de violência se
apresente no Brasil: a) grandes níveis de violência no contexto histórico (colonialismo,
escravidão, ditaduras), b) alta vulnerabilidade de transexuais na prostituição e c) falha
do Estado em prevenir e investigar esses crimes9.
Ressalte-se que a ausência de uma legislação protetiva aos direitos da população
trans no Brasil também é um dos fatores que ocasionam tamanha violência. Apesar de
haver um projeto de iniciativa popular denominado Estatuto da Diversidade Sexual, que
congrega uma série de direitos a toda a população LGBT, ele tem encontrado óbices para
se concretizar, em razão de resistência das bancadas mais conservadoras do Congresso
Nacional10.
4. SANCHES, Patrícia. Famílias trans no Brasil: o paradoxo da evolução de direitos e a epidemia transfóbica, Revista
IBDFAM: Família e Sucessões, vol. 22, Belo Horizonte: IBDFAM, p. 159-167, jul./ago. 2017, p. 165.
5. SANCHES, Patrícia. Famílias trans no Brasil: o paradoxo da evolução de direitos e a epidemia transfóbica, Revista
IBDFAM: Família e Sucessões, vol. 22, Belo Horizonte: IBDFAM, p. 159-167, jul./ago. 2017, p. 165.
6. CORREIO BRAZILIENSE. Brasil lidera ranking mundial de assassinatos transexuais. Disponível em:
especiais.correiobraziliense.com.br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais>. Acesso em:
31 maio 2018.
7. ÉPOCA. Reduzida por homicídios, a expectativa de vida de um transexual no Brasil é de apenas 35 anos. Disponível
em: -
sexual-no-brasil-e-de-apenas-35-anos.html>. Acesso em: 30 maio 2018.
8. BENTO, Berenice. Brasil: país do transfeminicídio. Disponível em: g.br>. Acesso em: 30 maio 2018.
9. CORREIO BRAZILIENSE. Brasil lidera ranking mundial de assassinatos transexuais. Disponível em:
especiais.correiobraziliense.com.br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais>. Acesso em:
31 maio 2018.
10. BRASIL. Estatuto da Diversidade Sexual. Disponível em:
m=7302364&disposition=inline>. Acesso em: 25 maio 2018.
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Diante dessa ausência de legislação, a população trans tem batido às portas do
Judiciário para ver assegurados os seus direitos. O tema da identidade de gênero, ou
melhor, dos direitos das pessoas trans ao reconhecimento social, é o foco do Recurso
Extraordinário 845.779/SC, ainda em curso, e da ADI 4.275, julgada em março deste ano.
As pessoas trans são uma das minorias mais marginalizadas e estigmatizadas na
sociedade. A incompreensão, o preconceito e a intolerância acompanham as pessoas
trans durante toda a sua vida e em todos os meios de convívio social. Desde a infância,
tais pessoas são hostilizadas nas suas famílias, na comunidade e na escola. A chegada da
puberdade e, posteriormente, da vida adulta não proporciona mais facilidades para os
integrantes desse grupo. Pelo contrário, a rejeição no mercado de trabalho é tão intensa
que a maioria das pessoas trans acaba se prostituindo por ausência de outras oportuni-
dades de emprego, ou tenta esconder sua condição, com todo o sofrimento pessoal que
isso acarreta, para obter e manter uma prof‌issão.
Entre a ampla gama de temas ligados à população LGBT, fez-se o devido corte me-
todológico para tratar dos direitos das pessoas trans, mais especif‌icamente, das pautas
que foram ou estão sendo apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Em um primeiro momento, faz-se necessário apresentar uma breve explanação
sobre os conceitos de sexo biológico, gênero, orientação sexual e identidade de gênero,
providência fundamental para aprofundar o trabalho.
Em seguida, serão abordadas as principais conquistas das pessoas trans, desde a
utilização do nome social a partir de resoluções e portarias administrativas até recentes
decisões no âmbito judicial, que culminaram no julgamento da ADI 4.275, pelo STF, o
qual possibilitou a alteração do nome e sexo no registro civil da pessoa trans, indepen-
dentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual.
Por último, será analisado o Recurso Extraordinário 845.779 SC, ainda aguardando
provimento f‌inal pelo STF, que trata da possibilidade de utilização de banheiros públicos
por pessoas trans de acordo com a sua identidade de gênero.
2. APONTAMENTOS SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE
Antes de enfrentar o tema, é conveniente fazer uma breve explanação de alguns
conceitos da temática de gênero e sexualidade, que comumente são confundidos pelo
senso comum, para entender melhor a transexualidade.
Primeiramente, o sexo biológico pode ser compreendido como o conjunto de carac-
terísticas f‌isiológicas nas quais se encontram as informações cromossômicas, os órgãos
genitais e os caracteres secundários, responsáveis por diferenciar machos e fêmeas11.
Já o conceito de gênero visa suplantar as limitações do sexo biológico. A categoria
de homem e a categoria de mulher decorrem de uma construção da realidade social e
não apenas de uma diferenciação anatômica12.
11. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014, p.49.
12. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014, p.50.
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Interessante analisar a def‌inição de Raewyn Connel e Rebecca Pearse sobre essa
terminologia:
O gênero é a estrutura de relações sociais que se centra sobre a arena reprodutiva e o conjunto de
práticas que trazem as distinções reprodutivas sobre os corpos para o seio dos processos sociais. De
maneira informal, gênero diz respeito ao jeito como as sociedades humanas lidam com os corpos
humanos e sua continuidade e com as consequências desse “lidar” para nossas vidas pessoais e
nosso destino coletivo13.
Orientação sexual, por seu turno, refere-se à capacidade de cada pessoa de ter uma
profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do
mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e/ou sexuais
com essas pessoas14.
Existem quatro tipos de orientação sexual: a heterossexualidade, que se refere ao
desejo afetivo e sexual por pessoas do sexo oposto; a homossexualidade, que trata do
desejo afetivo e sexual por pessoas do mesmo sexo; a bissexualidade, que compreende a
atração afetiva e sexual por pessoas de ambos os sexos; e a assexualidade, que é a ausên-
cia de atração por pessoas de ambos os sexos. Ressalte-se que não se trata de uma opção
sexual, uma vez que o indivíduo não escolhe deliberadamente por qual sexo sentirá
atração afetiva e sexual15.
A identidade de gênero se revela como conceito fundamental para compreender
a transexualidade. Trata-se de uma experiência interna e individual, profundamente
sentida, do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído
no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre
escolha, modif‌icação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgi-
cos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar
e maneirismos16.
Dessa maneira, é possível que o sujeito que tenha nascido com órgãos genitais
masculinos identif‌ique-se com o gênero masculino, da mesma forma que também é bem
possível que se identif‌ique com o gênero feminino17.
Tradicionalmente, fala-se em quatro tipos de identidade de gênero: cisgêneras são
as pessoas que possuem uma identidade de gênero que corresponde ao sexo biológico;
transgêneras são aquelas que possuem uma identidade de gênero distinta do sexo bio-
lógico; os travestis vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como
13. CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. Trad. Marília Moschkovich. São Paulo:
Versos, 2015, p. 48.
14. Conceitos apresentados na introdução aos Princípios de Yogyakarta – Princípios sobre a aplicação da legislação
internacional de direitos humanos em reação à orientação sexual e identidade de gênero. Disponível em:
www.dhnet.org.br/ direitos/sos/gays/principios_de_yogyakarta.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2017.
15. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014, p.51.
16. Conceitos apresentados na introdução aos Princípios de Yogyakarta – Princípios sobre a aplicação da legislação
internacional de direitos humanos em reação à orientação sexual e identidade de gênero. Disponível em:
www.dhnet.org.br/ direitos/sos/gays/principios_de_yogyakarta.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2017.
17. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014, p.51.
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homens ou mulheres (e sim como um não-gênero ou um terceiro gênero); os transexuais,
objeto do nosso estudo, são as pessoas transgêneras que fazem a transição de gênero,
com ou sem cirurgia de readequação genital18.
Importante destacar que a identidade de gênero independe da orientação sexual.
Assim, o indivíduo pode ter nascido com órgãos genitais masculinos, identif‌icar-se com o
gênero feminino e apresentar orientação sexual heterossexual, homossexual ou bissexual.
De modo que não há uma decorrência natural entre a identidade de gênero e a orientação
sexual19.
Compreendidos esses pressupostos teóricos, o entendimento da transexualidade
torna-se mais simples. Transexual, então, é o indivíduo cuja identidade de gênero difere
do sexo designado no nascimento, isto é, há discrepância entre os atributos físicos do
sexo biológico e a forma como o sujeito se reconhece em questão de gênero. É aquele
que nasce com genitálias correspondentes ao sexo masculino ou feminino, mas que se
identif‌ica com o gênero oposto20.
Como bem versa Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, “transexual é a pessoa que possui
uma dissociação entre seu sexo físico e o seu sexo psíquico”21.
Nas palavras de Tereza Rodrigues Vieira, “a transexualidade é caracterizada por um
forte conf‌lito entre corpo e identidade de gênero”22.
3. A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS RELATIVOS A QUESTÕES DE GÊNERO NO
BRASIL
Diante da inexistência de uma lei específ‌ica ou mesmo de um estatuto protetivo da
pessoa trans, as políticas públicas e a conquista de direitos advêm de decisões judiciais
e de normas administrativas.
O nome social foi a primeira grande conquista da população trans no Brasil. Pode
ser def‌inido como a designação pela qual as pessoas trans preferem ser chamadas cotidia-
namente, ref‌letindo sua identidade de gênero, em contraposição aos nomes de registro
civil determinados no nascimento, com os quais não se identif‌icam23.
18. ANDRADE, Daniela. Cis, Trans, Travesti: o que signif‌ica? Disponível em: .naomekahlo.com/single-
-post/2015/04/18/Cis-Trans-Travesti-o-que-signif‌ica>. Acesso em: 23 dez. 2017.
19. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014, p.51-52.
20. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de
redesignação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014,
p.52.
21. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O direito do transexual com f‌ilhos à cirurgia de transgenitalização. In: DIAS, Maria
Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 445-460, p. 448.
22. VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidade. In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade sexual e direito homo-
afetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 412-424, p. 412.
23. BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da iden-
tidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica
e fundacional. Disponível em: .br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>.
Acesso em: 27 maio 2018.
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Desde 2009, através da Portaria nº 1.820, a identif‌icação pelo nome social é garantida
no Sistema Único de Saúde (SUS) pela Carta de Direitos dos Usuários do SUS24.
Em 2015, a Resolução de nº 12 do Conselho Nacional de Combate à Discri-
minação LGBT passou a permitir o uso do nome social nas instituições de ensino
tanto em comunicações orais quanto em formulários como matrícula, registro
de frequência e avaliações25. Em 2016, o Decreto Presidencial nº 8.727 também
permitiu o uso do nome social de transexuais e travestis em toda a administração
pública da União26.
O nome social deve estar nos documentos of‌iciais, como crachás, f‌ichas e publica-
ções do Diário Of‌icial da União. Nos formulários e sistemas de registro de informações
também deve constar o campo “nome social”27.
Ressalte-se que a f‌inalidade dessas normas administrativas foi proteger o indivíduo
contra humilhações, constrangimentos e discriminações, tendo em vista que é dever
republicano a garantia do princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana e a
proteção às minorias. Desse modo, não se pode impor o uso de nome e a identif‌icação
de gênero que causará constrangimento à pessoa.
Para além do nome social, as pessoas trans também reivindicaram a alteração do
nome e do sexo nos seus registros civis. Todavia, as primeiras decisões judiciais sobre
o assunto subordinavam essa alteração no registro civil à necessidade de realização da
cirurgia de transgenitalização:
Transexual. Registro Civil. Alteração. Possibilidade. Cirurgia de transgenitalização. Aplicação do art.
da LICC diante da ausência de lei sobre a matéria. Sentença que atende somente ao pedido de alte-
ração de nome. Reforma parcial para também permitir a alteração do sexo no registro de nascimento.
Provimento do apelo. A jurisprudência tem assinalado a possibilidade de alteração do nome e do sexo
no registro de nascimento do transexual que se submete a cirurgia para redesignação sexual, com
fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana28.
24. BRASIL. Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde.
Brasília, 2009. Disponível em: .
Acesso em 1 jun. 2018.
25. BRASIL. Resolução nº 12, de 16 de janeiro de 2015. Estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso
e permanência de pessoas travestis e transexuais  e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não re-
conhecida em diferentes espaços sociais – nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto
ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização. Disponível em: .
saude.sp.gov.br/resources/crh/gsdrh/supervisao-escolar/a4-resolucaon12de16dejaneirode2015.pdf>. Acesso em:
1 jun. 2018.
26. BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da iden-
tidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica
e fundacional. Disponível em: .br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>.
Acesso em: 27 maio 2018.
27. BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da iden-
tidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica
e fundacional. Disponível em: .br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>.
Acesso em: 27 maio 2018.
28. BRASIL, TJRJ, 1ª Câmara Cível, AC 2006.001.61108, Rel. Des. Vera Maria Soares Van Hombeeck. Disponível em:
. Acesso em: 27 maio 2018.
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A transgenitalização é a cirurgia de redesignação de estado sexual por meio da re-
moção dos órgãos sexuais existentes para substituição por outros feitos artif‌icialmente,
semelhantes aos encontrados no sexo oposto29.
Desde a publicação da Portaria nº 457, de agosto de 2008, o Sistema Único de Saú-
de (SUS) oferece gratuitamente tratamento hormonal e cirurgias para a redesignação
das características físicas de pessoas trans30. Contudo, começou-se a questionar se as
pessoas trans não poderiam alterar o nome e o sexo no registro civil sem a necessidade
de se submeter à cirurgia de readequação sexual. Ocorre que nem todas as pessoas trans
desejam se submeter a esse tipo de procedimento cirúrgico31.
Além de mutiladora e esterilizante, a cirurgia é muito dispendiosa, podendo custar
até R$ 20.000,00 (vinte mil reais) na rede particular, de modo que poucas são as pessoas
trans capazes de arcar economicamente com a cirurgia em instituições de saúde priva-
das. Muito embora o SUS realize as cirurgias de transgenitalização, a realidade da saúde
pública brasileira é bastante lamentável32.
Segundo Fachin:
É totalmente compreensível que uma pessoa transexual queira manter seu órgão biológico, tendo em
vista não ser decisivo para a conguração de sua identidade de gênero. Há também que se considerar
que a manutenção da genitália pode ser fator essencial para a qualidade de vida do transexual (...)
congura-se como infração ao direito ao próprio corpo que se exija da pessoa transexual a cirurgia de
redesignação sexual, para que só então tenha direito à mudança de nome e sexo em seu registro civil.
De fato, ordenar a outrem a mutilação do próprio corpo, o uso de medicamentos necessários para que
se reconheça um direito apresenta-se como constrangimento33.
Patrícia Sanches considera a cirurgia de transgenitalização absolutamente agressiva,
além de irreversível:
Mas será que se faz necessária a mudança no corpo de uma pessoa a ensejar a mudança do sexo? Atu-
almente delineia-se o gênero sexual por sua função social, mais como um fenótipo comportamental
do que o aspecto da genitália. Assim o indivíduo teria deferido o pedido de mudança do gênero sexual
desde que demonstrasse que possui o sexo que socialmente representa, invertido daquele sicamente
suportado. A temática aqui discutida tem por objetivo pautar as discussões sobre a mudança de sexo,
principalmente no tocante à função social da determinação do gênero sexual na sociedade, demons-
trando assim que, para sua alteração, não há necessidade de uma intervenção cirúrgica de modicação
das características físicas, estas sim restritas a um ambiente de privacidade34.
Desse modo, não parece adequado, sob o ponto de vista constitucional da dignidade
da pessoa humana, exigir a realização de cirurgia de redesignação sexual para a mudança
29. EHRHARDT JR., Marcos. Direito Civil: LICC e Parte Geral. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 202.
30. BRASIL. Portaria nº 457, de 19 de agosto de 2008. Def‌ine as diretrizes nacionais para o processo transexualizador no
Sistema Único de Saúde – SUS, a serem implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das
três esferas de gestão. Disponível em:
html>. Acesso em: 20 maio 2018.
31. DIAS, Maria Berenice. Trans-viver. Disponível em: .ibdfam.org.br/artigos>. Acesso em: 1 jun. 2018.
32. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014, p.56.
33. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação, Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: IBDCivil, p. 39-65, jul./set. 2014, p.54.
34. SANCHES, Patrícia Corrêa. Mudança de nome e da identidade de gênero. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.).
Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 425-444, p. 430.
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de nome e sexo da pessoa trans, cabendo exclusivamente a elas, compreendendo todas
as suas implicações, realizá-la ou não.
Seguindo essa linha de pensamento, em 2014 o Conselho Nacional de Justiça, por
meio dos Enunciados nº 42 e 43, orientou que as cirurgias de transgenitalização de pes-
soas trans são dispensáveis para a retif‌icação de nome e sexo no registro civil35.
Embora no Brasil os direitos das pessoas trans não estejam protegidos por lei es-
pecíf‌ica, o PL 5.002/2013, criado pelos deputados federais Jean Wyllys do PSOL/RS e
Erika Kokay do PT/DF, dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o art. 58
da Lei nº 6.01536.
Conhecido como Projeto de Lei João Nery, em homenagem ao primeiro trans-ho-
mem do Brasil, o PL 5.002/2013 assegura às pessoas trans o direito à alteração do nome
e sexo diretamente no cartório de registro civil, sem necessidade de processo judicial,
inspirando-se na Lei de Identidade de Gênero da Argentina, de 201237.
Além da Argentina, em outros países como Austrália, Nova Zelândia, Alemanha e
Espanha, a identidade de gênero já é um direito fundamental consagrado há muitos anos
e sem necessidade de processo judicial ou cirurgia de transgenitalização38.
No Brasil, mesmo diante da omissão legislativa, a evolução dos direitos das pesso-
as trans se deu por meio de decisões judiciais fundamentadas no direito à dignidade, à
igualdade e à liberdade.
Nesse diapasão, a partir de 2014, alguns tribunais passaram a permitir a mudança
do prenome e sexo no registro civil das pessoas trans, sem a necessidade de submissão
à cirurgia de transgenitalização:
APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSGÊNERO. MUDANÇA DE NOME E
DE SEXO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE TRANGENITALIZAÇÃO. Constatada e provada a condição de
transgênero da autora, é dispensável a cirurgia de transgenitalização para efeitos de alteração de seu
nome e designativo de gênero no seu registro civil de nascimento. A condição de transgênero, por si
só, já evidencia que a pessoa não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor, que a sua real
condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta socialmente. Deram Provimento
Unânime39.
O Superior Tribunal de Justiça também se posicionou, corroborando o entendi-
mento acima esposado:
35. BRASIL. I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça. São Paulo, 2014. Disponível em:
www.cnj.jus.br/images/eventos/I_jornada_forum_saude/_ENUNCIADOS%20APROVADOS%20NA%20JORNA-
DA%20DE%20DIREITO%20DA%20SADE%20-%20PLENRIA%2015-5-14_revisado%20Carmem%203.pdf>.
Acesso em: 20 maio 2018.
36. SASSO, Milena Marcalós. A (des) necessidade de indicação de gênero ao assento de nascimento: uma ótica sob a
prática jurídica do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em um paradigma mundial, Revista IBDFAM: Família
e Sucessões, vol. 26, Belo Horizonte: IBDFAM, p. 157-173, mar./abr. 2018, p. 170.
37. BRASIL. Projeto de Lei nº 5.002/2013. Dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o art. 58 da Lei 6.015,
de 1973. Disponível em: .br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=1A-
07970D089AC2C98C121B62B3480F8F.proposicoesWebExterno2?codteor=1059446&f‌ilename=PL+5002/2013>.
Acesso em: 24 maio 2018.
38. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Gêneros, transgêneros, cisgêneros: orgulho e preconceito. Disponível em:
www.ibdfam.org.br/artigos>. Acesso em: 1 jun. 2018.
39. BRASIL. TJRS. – Apelação Cível Nº 70057414971. 8ª Câmara Cível. Rel. Des. Rui Portanova. Julgado em 5/6/2014.
Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2018.
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O TRATAMENTO DAS QUESTÕES DE GÊNERO NO DIREITO BRASILEIRO
Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de reticação
de sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo
biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro
civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir
a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito40.
Vale ressaltar que, apesar de alguns tribunais terem permitido a alteração do nome
e sexo da pessoa trans sem exigir para tanto a realização de procedimento cirúrgico, a
questão só foi pacif‌icada em março deste ano, quando o Supremo Tribunal Federal se
pronunciou sobre o assunto (acórdão ainda não publicado).
4. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.275: LIBERDADE PARA
MUDAR O REGISTRO SEM MUDAR O CORPO
O julgamento do STF se deu em virtude da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) nº 4.275. Proposta pela Procuradoria-Geral da República em 21 de julho de
2009, objetivava dar ao artigo 58 da Lei nº 6.015/73 interpretação conforme a Cons-
tituição, de modo a reconhecer às pessoas trans, no Brasil, o direito à substituição
do prenome e sexo no registro civil, independentemente da cirurgia de transgeni-
talização.
O plenário do STF se manifestou, por unanimidade, pela procedência da ação,
reconhecendo ser direito potestativo de toda pessoa trans declarar diretamente no car-
tório do registro civil, onde estiver registrada, qual o estado sexual (gênero) em que se
enquadra, mesmo que não haja realizado a cirurgia de mudança de sexo.
Apesar de a decisão ter sido unânime, houve controvérsias com relação aos requisitos
que seriam estabelecidos para a alteração do registro civil, bem como sobre a necessidade
de judicialização do pedido, de modo que duas correntes se f‌irmaram no STF.
A corrente conduzida pelo relator, Ministro Marco Aurélio, propunha como requi-
sitos para a alteração do registro civil: a idade mínima de 21 anos (maturidade adequada
para a tomada de decisão); diagnóstico médico de transexualismo por equipe multi-
disciplinar constituída por médico, psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo
e assistente social; e acompanhamento conjunto por equipe multidisciplinar por dois
anos. Além disso, os pressupostos devem ser aferidos em procedimento de jurisdição
voluntária, com a participação do Ministério Público, observados os arts. 98 e 99 da Lei
No entanto, a corrente vencedora foi a encampada pelo ministro Ricardo Lewan-
dowski, que desjudicializou a questão, entendendo que o requerimento deveria ser feito
diretamente ao registrador civil, bastando apenas: idade superior a 18 anos; convicção,
por pelo menos três anos, de pertencer ao gênero oposto ao biológico; e baixa probabi-
40. BRASIL. STJ. REsp 1626739/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 9/5/2017, Dje
1/8/2017. Disponível em: . Acesso em: 23 dez. 2017.
41. KÜMPEL, Vítor Frederico. Mudança de nome do transexual – o registro civil mais uma vez sob os holofotes do
STF. Disponível em: .migalhas.com.br/Registralhas/98,MI276625,51045-Mudanca+de+nome+do+-
transexual+o+registro+civil+mais+uma+vez+sob+os>. Acesso em: 28 maio 2018.
Direito Privado e Contemporaneidade.indb 231Direito Privado e Contemporaneidade.indb 231 23/03/2020 18:30:5623/03/2020 18:30:56
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lidade, de acordo com o pronunciamento do grupo de especialistas, de modif‌icação da
identidade de gênero42.
Desse modo, o interessado poderá se dirigir diretamente a um cartório para soli-
citar a mudança e não precisará comprovar sua condição, que deverá ser atestada por
autodeclaração43.
A decisão do STF foi festejada pela doutrina mais vanguardista, que a reconheceu
como um importante passo em prol do processo civilizatório e da desestigmatização.
Para Rodrigo Pereira da Cunha, “signif‌ica muito mais que uma simples mudança no
registro civil: é uma mudança que protege as pessoas trans do escárnio, da zombaria, da
agressão e da violência”44.
Por outro lado, há aqueles que defendem que a referida decisão apresenta incongru-
ência com o ordenamento jurídico vigente. Mencionam, por exemplo, que para a pessoa
cisgênero poder alterar o nome, como regra, necessita justif‌icar as suas razões e buscar a
via judicial, enquanto a pessoa trans poderia alterar o sexo e prenome, imotivadamente,
diretamente no registro civil45.
Outra crítica apontada por Carlos Magno é que:
[...] com a alteração do sexo e do prenome, outra pessoa pode ser levada a erro, por exemplo, no casa-
mento de pessoa cisgênero com pessoa transgênero, na hipótese do primeiro desconhecer essa situação
de fato, será impossível a geração de lhos biológicos sem que se recorra a métodos de reprodução
assistida, sendo o casamento passível de anulação por vício de vontade, nos termos dos arts. 1.550, III,
De todo modo, a decisão do STF se apresenta como uma situação nova, descorti-
nando um novo cenário e um novo sistema jurídico, o que faz com que muitas dúvidas
surjam. A primeira delas é: o que acontece se a pessoa quiser mudar o gênero novamente?
Segundo Cristiano Chaves:
Uma vez realizada a alteração do registro civil no cartório, se o titular pretender, posteriormente, rea-
lizar uma nova mudança, deve ser encaminhado ao Poder Judiciário, para que o Estado determine um
acompanhamento psicológico e médico, antes de uma nova deliberação, obstando uma insegurança
jurídica47.
42. KÜMPEL, Vítor Frederico. Mudança de nome do transexual – o registro civil mais uma vez sob os holofotes do
STF. Disponível em: .migalhas.com.br/Registralhas/98,MI276625,51045-Mudanca+de+nome+do+-
transexual+o+registro+civil+mais+uma+vez+sob+os>. Acesso em: 28 maio 2018.
43. CONJUR. STF autoriza pessoa trans a mudar nomes mesmo sem cirurgia ou decisão judicial. Disponível em:
.com.br/2018-mar-01/stf-autoriza-trans-mudar-nome-cirurgia-ou-decisao-judicial>. Acesso
em: 31 maio 2018.
44. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Gêneros, transgêneros, cisgêneros: orgulho e preconceito. Disponível em:
www.ibdfam.org.br/artigos>. Acesso em: 1 jun. 2018.
45. SOUZA, Carlos Magno Alves de. A decisão do STF em reconhecer aos transgêneros o direito à alteração de prenome e
sexo, diretamente no registro civil. Disponível em: . Acesso em: 1 jun. 2018.
46. SOUZA, Carlos Magno Alves de. A decisão do STF em reconhecer aos transgêneros o direito à alteração de prenome
e sexo, diretamente no registro civil. Disponível em: . Acesso em: 1 jun.
2018.
47. FARIAS, Cristiano Chaves de. A dor e a delícia de ser o que é: A possibilidade de alteração do estado sexual e do
nome diretamente em cartório, independente de idade ou de cirurgia prévia. Disponível em: .ibdfam.org.
br>. Acesso em: 2 jun. 2018.
Direito Privado e Contemporaneidade.indb 232Direito Privado e Contemporaneidade.indb 232 23/03/2020 18:30:5623/03/2020 18:30:56
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O TRATAMENTO DAS QUESTÕES DE GÊNERO NO DIREITO BRASILEIRO
Outro questionamento muito comum é: como f‌ica a questão da aposentadoria, se no
Brasil elencamos como requisitos idades diferentes para homens e mulheres? Segundo o
mesmo autor, “com a mudança, a pessoa passa a ser tratada pelo seu novo estado sexual
para todos os f‌ins, inclusive previdenciários. Até porque aquele sempre deveria ter sido
o seu gênero sexual”48.
Na Argentina, onde a Lei de identidade de gênero vigente desde 2012 estabelece
que qualquer pessoa pode mudar seu nome e gênero segundo sua escolha e sem a obri-
gação de tratamento hormonal ou cirúrgico, já se tem notícia de que um funcionário
público mudou sua identidade de gênero nos documentos para f‌igurar como mulher e
se aposentar cinco anos mais cedo49.
Parece-nos correto que a mudança de nome e de sexo no registro civil deva ser
reconhecida às pessoas trans que se submeteram ou não à cirurgia de redesignação de
estado sexual, conferindo-se assim máxima efetividade ao princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana.
No entanto, deve-se ter a devida cautela na regulamentação de tal direito, a f‌im de
que a solução encontrada pela jurisprudência não se torne um futuro problema jurídico.
5. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 845.779 SC: PESSOA TRANS E A POLÊMICA DO
ACESSO AOS BANHEIROS
Outra ação sobre direitos das pessoas trans ao reconhecimento social que também
bateu às portas da Corte Constitucional foi o Recurso Extraordinário 845.779 SC.
O caso concreto que norteou a decisão do STF é oriundo do Estado de Santa Cata-
rina e envolve um pedido de indenização por danos morais feito por uma pessoa trans
contra um shopping center.
A autora, que se identif‌ica como uma trans mulher, estava passeando num sho-
pping center, quando precisou usar o banheiro no referido estabelecimento comercial.
Dirigindo-se então ao banheiro feminino, onde costumava fazer suas necessidades,
foi abordada por uma funcionária, que a forçou a se retirar, alegando que sua presença
causaria constrangimento às demais usuárias do local, devendo ela utilizar o banheiro
masculino. Impedida de utilizar o banheiro e estando demasiadamente nervosa, não
conseguiu controlar suas necessidades f‌isiológicas e as fez nas próprias vestes, sob o
olhar das pessoas que ali transitavam. Após passar pela situação vexatória, ainda teve
de fazer uso do transporte coletivo para voltar para a sua casa50.
A autora ingressou com ação no juízo de 1º grau contra o shopping center e
ganhou o direito a receber 15 mil reais de indenização por danos morais. A parte
48. FARIAS, Cristiano Chaves de. A dor e a delícia de ser o que é: a possibilidade de alteração do estado sexual e do
nome diretamente em cartório, independente de idade ou de cirurgia prévia. Disponível em: .ibdfam.org.
br>. Acesso em: 2 jun. 2018.
49. GAZETA DO POVO. Homem é acusado de mudar de sexo para se aposentar cinco anos antes. Disponível em:
-de-sexo-para-se-aposentar-cinco-anos-
-antes-0lwgew4fcwud0qniee2viptkl>. Acesso em: 2 jun. 2018.
50. BRASIL. STF, Plenário, RE 845.779 RG, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 13.11.2014.
Direito Privado e Contemporaneidade.indb 233Direito Privado e Contemporaneidade.indb 233 23/03/2020 18:30:5623/03/2020 18:30:56
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vencida, não satisfeita, apelou para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que
reformou a sentença por entender que não havia direito no caso à indenização por
dano moral, já que a parte autora teria sofrido “mero dissabor”51. Então, a autora
opôs recurso extraordinário no STF, cujo seguimento foi negado na origem, sendo
depois admitido em razão de agravo.
No caso, o Plenário do STF, por maioria de votos, reputou constitucional a questão
e reconheceu a existência de repercussão geral52.
O julgamento de mérito começou em novembro de 2015, mas foi suspenso em face
do pedido de vistas do ministro Luís Fux53.
Até o momento, os ministros Luís Roberto Barroso, relator do caso, e Edson Fachin
votaram favoravelmente ao pleito e ao direito das pessoas trans de usarem o banheiro
de acordo com sua identidade de gênero. O parecer da Procuradoria-Geral da República
também foi nesse sentido54.
Nesta senda, um dos principais argumentos utilizados para se negar o acesso ao
banheiro às pessoas trans de acordo com sua identidade de gênero é o constrangimento
que geraria às demais pessoas que utilizam o espaço. Em seu parecer, a Procuradoria-
-Geral da República contesta esta alegação ao lembrar que é preciso perceber e reparar
também o constrangimento sofrido pela trans que, identif‌icada e vestida com roupas
femininas, tratando-se de “transmulher”, é obrigada a ingressar num banheiro masculino
e vice-versa, em se tratando de “trans-homem”55.
Por outro lado, também se deve exigir da pessoa trans um mínimo de exterio-
rização da vontade de se identif‌icar com o sexo oposto, de modo que não é razoável
presumir o dano praticado em relação àquele que não apresente processo mínimo
de transformação de gênero que permita identif‌icar essa vontade de identif‌icação
individual e social56.
A criação de um “terceiro banheiro”, exclusivo ao público LGBT ou a transgênero,
constitui medida de segregação, incompatível com o respeito ao direito à igualdade
e à não discriminação. Conclui a PGR que impossibilitar que o transgênero faça uso
do banheiro referente ao sexo com o qual se identif‌ica pode representar um fator
de instabilidade também para os usuários desses espaços públicos. Basta pensar no
tumulto que causaria a entrada de um trans-homem, com compleições físicas (e
51. BRASIL. TJSC, Terceira Câmara de Direito Civil, Apelação Cível 2012.019304-1, Rel. Des. Fernando Carioni, j.
em 8.5.2012.
52. BRASIL. STF, Plenário, RE 845.779 RG, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 13.11.2014.
53. GORSDORF, Leandro Franklin; KIRCHHOFF, Rafael dos Santos; HOSHINO, Thiago. De banheiros, armários e
cortes: identidade de gênero na pauta do STF, Justiça e direitos humanos: olhares críticos sobre o Judiciário em 2015.
Curitiba: Terra de Direitos, 2016, p. 76-82, p. 76.
54. GORSDORF, Leandro Franklin; KIRCHHOFF, Rafael dos Santos; HOSHINO, Thiago. De banheiros, armários e
cortes: identidade de gênero na pauta do STF, Justiça e direitos humanos: olhares críticos sobre o Judiciário em 2015.
Curitiba: Terra de Direitos, 2016, p. 76-82, p. 76.
55. Trecho do parecer da Procuradoria-Geral da República no julgamento do RE 845.779 SC. Disponível em:
www.mpf.mp.br/pgr/institucional/procurador-geral-da-republica/informativo-de-teses/edicoes/informativo-no-
-22-de-05-11-2015/docs/RE%20845779-%20Versao%20Final.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2018.
56. Trecho do parecer da Procuradoria-Geral da República no julgamento do RE 845.779 SC. Disponível em:
www.mpf.mp.br/pgr/institucional/procurador-geral-da-republica/informativo-de-teses/edicoes/informativo-no-
-22-de-05-11-2015/docs/RE%20845779-%20Versao%20Final.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2018.
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O TRATAMENTO DAS QUESTÕES DE GÊNERO NO DIREITO BRASILEIRO
psíquicas) masculinas muitas vezes idênticas ao de quem nasceu biologicamente
homem, em um banheiro feminino57.
Em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso consignou que a solução para
o caso estaria na ponderação entre os dois direitos envolvidos: o direito de usar o
banheiro feminino por parte da trans mulher e o direito à privacidade das mulheres
cisgêneras58.
Asseverou o ministro que o suposto constrangimento das mulheres cisgêneras
seria limitado, visto que as situações mais íntimas dentro de um banheiro ocorrem em
cabines privadas, de acesso reservado a uma única pessoa, de modo que o desconforto
decorrente da mera presença da mulher trans em áreas comuns de banheiro feminino
não pode ser comparado àquele suportado pela mulher trans em um banheiro mas-
culino59.
Ao votar, o ministro Edson Fachin deixou claro que o pensamento comum na so-
ciedade de que o uso de banheiro público feminino por transexual mulher causa cons-
trangimento, desconforto ou insegurança às demais usuárias não raramente reverbera
preconceitos conscientes ou inconscientes e até mesmo o desconhecimento do outro60.
Até o momento nenhum outro voto foi proferido, estando os autos atualmente
conclusos ao relator.
Questões como essa chegam ao Poder Judiciário o tempo todo, sendo-lhes aplicadas
as mais diversas soluções. Por vezes, a pessoa trans ganha o direito de utilizar o banheiro
adequado ao gênero com o qual se identif‌ica; outras vezes o Judiciário tem decidido que
ela deve usar o banheiro de acordo com seu sexo biológico.
Além desse processo, estima-se existirem ao menos outros 788 casos parecidos que
aguardam decisão do STF. O julgamento pode ser uma importante sinalização da posição
dos ministros sobre ações relacionadas ao tema61.
Cite-se, como exemplo, julgado do Tribunal de Justiça do Espírito Santo que ana-
lisou o caso de uma mulher trans, também proibida de utilizar o banheiro feminino de
um shopping center, conferindo a ela o direito à indenização por danos morais:
Processo Civil e Civil – Apelação – Transexual – Proibição de uso de banheiro feminino em shopping
center – Violação à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade – Compensação a título
de dano moral – Cabimento – Recurso Provido62.
57. Trecho do parecer da Procuradoria-Geral da República no julgamento do RE 845.779 SC. Disponível em:
www.mpf.mp.br/pgr/institucional/procurador-geral-da-republica/informativo-de-teses/edicoes/informativo-no-
-22-de-05-11-2015/docs/RE%20845779-%20Versao%20Final.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2018.
58. Trecho do voto do ministro Barroso no julgamento do RE 845.779 SC. Disponível em: .com.
br/dl/voto-ministro-barroso-stf-questao.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2018.
59. Trecho do voto do ministro Barroso no julgamento do RE 845.779 SC. Disponível em: .com.
br/dl/voto-ministro-barroso-stf-questao.pdf>. Acesso em: 20 maio 2018.
60. Trecho do voto do ministro Fachin no julgamento do RE 845.779 SC. Disponível em: g.br/assets/
img/upload/f‌iles/RE-845779-%20Voto%20Min%20%20Edson%20Fachin.pdf>. Acesso em: 20 maio 2018.
61. RAMALHO, RENAN. G1. Relator do STF vota a favor do uso de banheiro feminino por transexual. Disponível
em: -
-transexual.html>. Acesso em: 01 maio 2018.
62. BRASIL. TJES, 1ª Câmara Cível, APL 00278877320098080024, Rel. Des. Fábio Clem de Oliveira, j. em 2.6.2015.
Direito Privado e Contemporaneidade.indb 235Direito Privado e Contemporaneidade.indb 235 23/03/2020 18:30:5623/03/2020 18:30:56
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Em outro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, diante da transexual proibida
de utilizar o banheiro feminino e expulsa da academia, decidiu pela manutenção da
sentença que deferiu os danos morais.
A fundamentação do julgado, no entanto, chama atenção por considerar legítima
a proibição da utilização sanitária por transexual, mas condena o estabelecimento
por considerar inadmissível sua conduta: “uma vez aceita a matrícula e sendo infor-
mada dessa condição, não podia a academia excluir o aluno como forma de castigo,
sem pelo menos uma advertência prévia se entendia que o ato atentava contra suas
posturas”63.
Como se vê, o caso a ser julgado pelo STF não é isolado, ultrapassando o interesse
das partes diretamente envolvidas e repercutindo na vida de todas as pessoas trans.
Como bem analisaram Roger Raupp Rios e Alice Hertzog, o uso de banheiros públi-
cos é uma questão delicada para transexuais. Shoppings, academias, repartições públicas,
empresas e diversos outros espaços coletivos separam os banheiros a partir de uma lógica
binária: masculino e feminino. Identif‌icados socialmente por um gênero distinto do seu
sexo biológico, as pessoas trans normalmente enfrentam problemas quando precisam
utilizar esses espaços, visto que nem sempre lhes é permitido frequentar o banheiro co-
erente com seu gênero, sob o argumento de que gerariam constrangimentos aos demais
usuários daqueles espaços64.
Alertam Leandro Franklin Gorsdorf, Rafael dos Santos Kirchhoff e Thiago Hoshino
que, além das pessoas trans e travestis, também pessoas intersexos são especialmente
afetadas pelo binarismo na nossa sociedade. Ressaltam que diversos países possuem
banheiros sem distinção, sem notícia de conf‌litos maiores, como se teme65.
Nesse cenário, importante registrar a edição da Resolução nº 12 do Conselho Nacio-
nal de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e
Transexuais, de 16 de janeiro de 2015, que estabelece parâmetros para a garantia de acesso
e permanência de travestis e pessoas trans em diferentes espaços sociais e recomenda
a garantia do uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, de
acordo com a identidade de gênero de cada pessoa66.
Aportes do direito comparado são sempre úteis diante de questões novas e pouco
versadas no direito interno.
63. BRASIL. TJSP; Apelação Com Revisão 9114350-38.2006.8.26.0000; Relator (a): Testa Marchi; Órgão Julgador:
10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bauru  7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/7/2008; Data de Registro:
24/7/2008.
64. RIOS, Roger Raupp; RESADORI, Alice Hertzog. Direitos humanos, transexualidade e direitos dos banheiros,
Direito e práxis. Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12, 2015, p. 196-227, p. 198-199.
65. GORSDORF, Leandro Franklin; KIRCHHOFF, Rafael dos Santos; HOSHINO, Thiago. De banheiros, armários e
cortes: identidade de gênero na pauta do STF, Justiça e direitos humanos: olhares críticos sobre o judiciário em 2015.
Curitiba: Terra de Direitos, 2016, p. 76-82, p. 80.
66. BRASIL. Resolução nº 12, de 16 de janeiro de 2015. Estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso
e permanência de pessoas travestis e transexuais  e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não re-
conhecida em diferentes espaços sociais – nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto
ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização. Disponível em: .
saude.sp.gov.br/resources/crh/gsdrh/supervisao-escolar/a4- resolucaon12de16dejaneirode2015.pdf>. Acesso em:
1 jun. 2018.
Direito Privado e Contemporaneidade.indb 236Direito Privado e Contemporaneidade.indb 236 23/03/2020 18:30:5623/03/2020 18:30:56
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O TRATAMENTO DAS QUESTÕES DE GÊNERO NO DIREITO BRASILEIRO
Nesse sentido, em janeiro de 2014, a Suprema Corte de Maine, nos Estados Unidos,
ao julgar o caso John Doe et al. Regional School Unit 2.633, reconheceu que os alunos
trans devem ser autorizados a utilizar, em suas escolas, os banheiros referentes ao gênero
com o qual se identif‌icam67.
Apesar de o julgamento ainda não ter chegado a um resultado f‌inal, acredita-se que,
pela postura que o STF vem adotando nos últimos anos, no sentido de reconhecer cada
vez mais direitos às pessoas trans, será dado provimento ao recurso extraordinário. A de-
cisão recente do STF na ADI 4275, mencionada neste trabalho, reforça tal entendimento.
No tocante à criação de um terceiro banheiro, importante pontuar que não resol-
veria o problema, pelo contrário, tão só geraria mais segregação e discriminação ao criar
uma terceira e estigmatizada classe de usuários, desviada da “normalidade” de gênero.
Roger Raupp Rios e Alice Hertzog pensaram em algumas alternativas em substituição
aos banheiros neutros, as quais parecem ser mais condizentes com o direito à dignidade,
liberdade, privacidade e igualdade:
Arrolem-se algumas possibilidades: dois banheiros separados por gênero, com liberdade de utilização
sem discriminação por identidade de gênero; instalações de banheiros de utilização individual, aces-
síveis a todos, sem distinção de sexo ou identidade de gênero; instalação de um único banheiro, de
utilização coletiva e universal, com cabines individuais internas sem distinções68.
Por f‌im, caso o STF decida pelo provimento do recurso extraordinário, ainda res-
tará o desaf‌io de se assegurar a efetividade da decisão, considerando que são relevantes
as dif‌iculdades de parte do corpo social em aceitar identidades de gênero que fogem ao
padrão clássico culturalmente estabelecido, o que necessita ser revisto sob a perspectiva
do respeito à diversidade, à intimidade e à diferença.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aparentemente, o Judiciário no Brasil vem dando passos signif‌icativos contra a
discriminação e contra o tratamento excludente que tem marginalizado grupos mino-
ritários em nosso país, a exemplo das pessoas trans.
No entanto, não se pode dizer o mesmo dos brasileiros. Ainda há uma dif‌iculdade
de parte da sociedade em aceitar identidades de gênero que fogem ao padrão clássico
culturalmente estabelecido.
Isso tem se ref‌letido nos números. Cento e quarenta e quatro é o número de mor-
tes ocorridas em 2016, o que colocou o Brasil na quarta posição no cenário mundial
de violência transfóbica. Trinta e cinco anos é a expectativa de vida da pessoa trans no
Brasil, menos da metade da expectativa de vida do restante da população brasileira, que
é de 75 anos.
67. MAINE SUPREME JUDICIAL COURT. John Doe et al. v. Regional School Unit 26. Disponível em:
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Enquanto conseguimos avançar na medicina para que o brasileiro pudesse viver
mais, paradoxalmente também matamos cada vez mais, fracassando na nossa capacida-
de de respeitar as diferenças. Todavia, a relação do sujeito com o seu nome e com o seu
próprio corpo é elemento fundamental da intimidade e da busca por uma identidade,
não cabendo maiores questionamentos pela sociedade ou pelo Estado, mas sim o devido
respeito.
A mudança de nome e de sexo da pessoa trans, independentemente da mudança em
seu corpo, diz respeito à liberdade e autodeterminação, e por isso deve ser assegurada
pelo Estado.
De maneira semelhante, o uso do banheiro da pessoa trans de acordo com o gênero
com que se identif‌ica diz respeito à sua liberdade para ser da forma como se enxerga, de
modo que não deve ser coibida pelo Estado. No tocante ao RE 845.779 SC, espera-se que
siga o mesmo caminho da ADI 4.275, no sentido da ampliação de direitos da população
trans no Brasil.
Por f‌im, mais importante que o avanço do Direito, espera-se o avanço da sociedade
na sua capacidade de ter empatia e de ser tolerante com os diferentes.
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O TRATAMENTO DAS QUESTÕES DE GÊNERO NO DIREITO BRASILEIRO
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