Tratamento tributário do ágio: considerações sobre seu fundamento

AutorLuiz Eduardo Schoueri
CargoProfessor Titular da Cadeira de Legislação Tributária da Faculdade de Direito da USP
Páginas167-183

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1. Introdução

O art. 248 da Lei 6.404/761 (Lei das Sociedades por Ações) determina que, "no balanço patrimonial da companhia, os investimentos em coligadas sobre cuja administração tenha influência significativa, ou de que participe com 20% (vinte por cento) ou mais do capital votante, em controladas e em outras sociedades que façam parte de um mesmo grupo ou estejam sob controle comum serão avaliados pelo método da equivalência patrimonial".

Trata-se do método da equivalência patrimonial/MEP,2 obrigatório na avaliação de investimentos específicos. De acordo com o MEP, os investimentos são contabilizados, pela investidora, por seu valor patrimonial, de modo que qualquer mutação patrimonial ocorrida na empresa controlada ou coligada seja refletido, proporcionalmente, em sua investidora.

Para que o mecanismo acima funcione, entretanto, importa que, a todo o momento, seja possível efetuar uma relação proporcional direta entre a conta de investimentos, constante do ativo da investidora, e a conta de patrimônio líquido da controlada ou coligada.

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No entanto, nem sempre as participações societárias são adquiridas por seu valor patrimonial. Na maioria das vezes o valor pago na aquisição de ações não corresponde ao valor proporcional de seu patrimônio líquido, mas decorre de inúmeras negociações que se prolongam no tempo, nas quais diversos fatores, além do valor do acervo líquido da sociedade investida, acabam por determinar o preço de venda das participações societárias.

É possível, assim, que o preço pago fique acima ou abaixo de seu valor patrimonial. Nesse caso, surgem as figuras do ágio e do deságio, correspondentes à diferença entre o valor patrimonial e o valor efetivamente pago pela participação societária.

O ágio, portanto, é o valor resultante da diferença entre o custo total de aquisição do investimento em sociedade controlada ou coligada e o valor da parcela proporcional ao patrimônio líquido destas na época da aquisição. Em suma, entende-se por ágio o valor pago na aquisição do investimento além do valor do patrimônio líquido da coligada ou controlada que se está adquirindo.

Reconhecendo a existência do ágio, o art. 385 do Decreto 3.000/1999 - o Regulamento do Imposto de Renda (RIR) - exige que, no momento da própria aquisição da participação societária, o adquirente desdobre o valor pago entre "investimento" (correspondendo ao valor patrimonial da participação adquirida) e o "ágio" (diferença entre o valor pago e o valor patrimonial).

Adicionalmente, no momento da contabilização do ágio deve-se indicar seu fundamento econômico, que, nos termos do § 2o do art. 20 do Decreto-lei 1.598/1977, correspondente ao § 2o do art. 385 do RIR, pode consistir em: I - valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada superior ao custo registrado na sua contabilidade; II - valor de rentabilidade da coligada ou controlada, com base em previsão dos resultados nos exercícios futuros; ou III - fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas.

No presente estudo serão analisados os fundamentos do ágio, sobretudo as hipóteses I e II. Os dois fundamentos, em princípio, assemelham-se, mas produzem conseqüências tributárias substancialmente diversas.

Em seguida pretende-se investigar as razões para o legislador tributário ter limitado a dedutibilidade do ágio, bem como a lógica para sua dedução, em caso de incorporação.

2. Fundamentos do ágio

Consoante se anteviu, o primeiro fundamento econômico para o ágio ocorre nas hipóteses em que o valor de mercado dos bens do ativo da coligada ou controlada é superior ao custo registrado em sua contabilidade.

O segundo fundamento econômico para o ágio, por sua vez, consiste na expectativa de rentabilidade futura da coligada ou controlada.

Nesse passo, cumpre apontar qual é a diferença entre as hipóteses acima referidas, trazidas pelos incisos I e II do § 2° do art. 385 do RIR. Deve-se, portanto, delimitar um critério válido de discrímen, de modo a distinguir os dois fundamentos econômicos a justificar o ágio.

Em um primeiro momento poder-se-ia cogitar que apenas uma delas - a do inciso I - se referiria ao valor de mercado do investimento. Tal afirmação, no entanto, não merece prosperar.

Nas aquisições de participações societárias entre partes independentes, o valor pago pelo investimento será sempre um preço de mercado. Deste modo, as hipóteses dos incisos I e II do § 2° do art. 385 do RIR, necessariamente, determinam o valor de mercado do investimento.

Não é correto, portanto, imaginar que somente o fundamento do inciso I (valor de mercado dos bens do ativo da controla-

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da ou coligada superior ao custo registrado na contabilidade) busca ref letir o valor de mercado do investimento. Qualquer que seja o fundamento do ágio, ele terá servido de critério para que se alcançasse um preço de mercado.

Partindo-se do raciocínio acima exposto, no entanto, pode-se perceber que o legislador previu a possibilidade de por critérios diferentes se chegar a um preço de mercado. Os preços obtidos mediante a aplicação de cada um dos critérios, por óbvio, não serão necessariamente idênticos, uma vez que partem de fundamentos diversos.

A diferença nos preços de mercado justifica-se em função do ponto de vista subjetivo do comprador, e não do vendedor. Não interessa, para efeitos legais, a razão pela qual o vendedor concordou com o preço, mas apenas o porquê de o comprador se dispor a pagar tal montante. Afinal, o ágio será contabilizado pelo último, e, portanto, é a característica sub-jetiva do momento da aquisição que será relevante para a fundamentação do ágio.

Deste modo, conclui-se que os fundamentos do ágio se baseiam nos possíveis motivos determinantes da fixação do preço de compra das participações societárias em outras empresas. Relevante, portanto, é identificar os motivos determinantes presentes no incisos I e II do § 2o do art. 385 do RIR, de modo a diferenciá-los.

Na hipótese do inciso I o legislador cogita de uma diferença entre o valor con-tábil e o valor de mercado dos bens do ativo da coligada ou controlada. O motivo determinante do pagamento do ágio pelo comprador, portanto, é o fato de os bens, isoladamente considerados, possuírem um valor de mercado. Há um vínculo entre o ágio e o valor de mercado de cada bem da controlada e coligada.

Pode-se confirmar a afirmação acima através do art. 386 do RIR. De acordo com o dispositivo mencionado, o ágio incorpora-se ao próprio bem a que ele se refere. Assim, apenas se considera reali-zado o fundamento econômico do ágio na medida e na proporção em que o próprio bem se realiza.

A respeito do fundamento do ágio que decorre do valor de mercado dos bens do ativo da coligada ou controlada, Ian de Porto Alegre Muniz afirma: "Com efeito, em algumas sociedades prepondera o caráter patrimonial dos seus ativos. Por exemplo, uma sociedade que é titular de extensas glebas de terra, ou de vultosos investimentos mobiliários. Nessa hipótese, uma avaliação do seu acervo líquido deverá ser uma verificação de qual a liquidez e por que quantidade de moeda estaria o mercado disposto a trocar seus ativos"3 (grifei).

Portanto, é possível concluir que no fundamento do ágio exposto no inciso I do § 2° do art. 385 do RIR é considerado o potencial ganho que se possa auferir na realização de um bem. O motivo determinante que leva o comprador a pagar o ágio consiste no reconhecimento de que os bens do ativo da coligada ou controlada estão subavaliados.

Já no caso do inciso II, que tem por fundamento a rentabilidade futura da coligada ou controlada, percebe-se que o pressuposto adotado pelo legislador é o auferi-mento de lucros em momentos sucessivos, sem uma limitação no tempo.

Nessa situação, a empresa investidora paga o ágio porque espera ter um retorno sobre seu investimento. Em outras palavras, estima-se que o investimento continue a render lucros por um determinado período, já que não é razoável estimar que se vá auferir lucros infinitamente.

Nos casos em que o comprador paga o ágio com o fundamento na rentabilidade futura da investida não se cogita de investigar o valor que poderia receber ao alienar um ou outro bem da empresa. Pelo contrário, tal fundamento pressupõe que

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o investimento não será desfeito, já que o lucro será obtido não com sua realização, mas com a rentabilidade futura da investida.

Entende-se, portanto, que o investimento pago com ágio que se fundamente no inciso II do § 2° do art. 385 do RIR terá continuidade por prazo não-determinado, de modo a gerar lucros para o investidor.

No presente caso, os bens do ativo da controlada ou coligada já não mais são considerados a partir de seu valor isolado, como na hipótese do inciso I, mas enquanto partes de um empreendimento, possuindo, portanto, um valor por conta dos resultados que eles proporcionam, inseridos no conjunto (Teilwert).

De fato, em determinadas sociedades o valor isolado de seus ativos, como bens que podem ser individualmente realizados, não exprime o valor real do empreendimento. Deve-se avaliar o negócio, portanto, de maneira global, em sua capacidade de gerar recursos para a empresa investidora.4

Procedeu-se, desta feita, à distinção entre as hipóteses dos incisos I e II do § 2° do art. 385 do RIR. Enquanto no inciso 1 o ágio se justifica e se realiza na medida em que os bens do ativo da coligada ou controlada sejam realizados, no inciso II se considera a...

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