Travestis e quimeras: notas sobre corporalidades abjetasi

AutorLucas Lazzarotto Vasconcelos Costa/Cláudia Samuel Kessler
CargoGraduando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria, Brasil/Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Páginas276-295
276 GÊNERO | Niterói | v. 21 | n. 2 | p. 276-295 | 1. sem 2021
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TRAVESTIS E QUIMERAS: NOTAS SOBRE
CORPORALIDADES ABJETASI
Lucas Lazzarotto Vasconcelos Costa1
Cláudia Samuel Kessler2
Resumo: Neste artigo, refletimos sobre corpo e gênero a partir de uma analogia
entre a travestilidade e a potência ético-política da quimera. A bibliografia
investigada privilegia etnografias sobre a população trans brasileira, mais
especificamente as travestis. Organizamos nossos argumentos em três eixos:
primeiro, discutimos as técnicas de construção corporal, problematizando a
noção de corpos “naturais” e “montados”; depois, propomos uma discussão
sobre binarismo de gênero e suas dissidências, passabilidade e visibilidade
social; no último eixo, analisamos os efeitos ético-estéticos da travestilidade a
partir dos conceitos de excesso, fragmento e monstruosidade. Em conclusão,
afirmamos ser possível pensar um “quimerismo travesti”
Palavras-chave: Gênero; Corpo; Travestis.
Abstract: In this paper, we reflect on body and gender based on an analogy
between the travestis and a chimera’s ethical-political potency. The bibliography
focuses on ethnographic researches on the Brazilian trans population, specifically
travestis. We organize our arguments in three axes: first, we discuss the body
building techniques, problematizing the concepts of “natural” and “assembled”
bodies; then, we discuss gender binarism and its divergences, passability and
social visibility; finally, we analyze the ethical-aesthetical eects of travestis
based on the concepts of excess, fragment and monstrosity. We conclude that
it is possible to think about a “travesti chimerism”.
Keywords: Gender; Body; Travestis.
1 Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. E-mail: lvclucas@gmail.com.
Orcid: 0000-0001-8501-2059
2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora no Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. E-mail: jornalista24h@hotmail.com.
Orcid: 0000-0002-1292-6914
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NãoComercial 4.0 Internacional.
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GÊNERO | Niterói | v. 21 | n. 2 | p. 276-295 | 1. sem 2021
Introdução
A utilização da quimera como forma de representação é muito suges-
tiva sobre o estatuto que a transgeneridade assume na cultura ocidental3.
Como escolha política e metodológica, optamos por utilizar neste estudo
uma abordagem que privilegie mais especificamente as travestis devido
às suas históricas vulnerabilidades sociais e pelo estatuto de “não pessoa”
a que são costumeiramente reduzidas. Além das travestis, há outras tantas
identidades sexuais dissidentes que ressignificam e positivam existências
que desviam da cisheteronormatividade, tais como “bicha”, “viado”, “sapa-
tão”, entre outras. Estas identidades apresentam posicionamentos políticos
que causam estranhamento, subvertem e desestabilizam4.
Preliminarmente, podemos traçar uma distinção entre um uso genérico
e outro específico da palavra quimera. O sentido abrangente nomeia qual-
quer “união ou combinação, real ou fantástica, de elementos diversos num
todo heterogêneo ou incongruente” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p.1594).
Compor criaturas a partir da combinação de outros seres é bastante usual
em toda produção cultural humana. São quimeras, por exemplo, Ganesha
(divindade do hinduísmo), Anubis (divindade no Egito Antigo), a esfinge,
o minotauro, sereias, o Bafomé (veremos adiante) e toda sorte de monstros.
Em um sentido mais específico, Quimera é o nome de uma persona-
gem da mitologia grega, referida como um monstro terrível, cruel e gro-
tesco e que possui partes de leão, serpente e cabra (HESÍODO, 2012;
BULFINCH, 2002; FRANCHINI; SEGANFREDO, 2007). Esse ser
mitológico foi morto pelo herói Belerofonte porque causava desordem,
praticava pilhagem e atormentava o reino da Lícia (BULFINCH, 2002).
Na Teogonia de Hesíodo se faz notar um detalhe importante: a Quimera é
composta de uma parte feminina (a cabra) e uma parte masculina (o leão).
3 Em relação às questões relativas à identidade de gênero, o drama chileno Una Mujer Fantastica, produção
cinematográfica de 2017, se refere à simbologia sexual contida na figura da quimera. Marina, mulher trans e
protagonista do filme, é retratada por outra personagem como uma quimera na tentativa de (des)qualificá-la,
enquanto uma mistura incompreensível de elementos. A partir desse produto cultural, passamos a refletir sobre
as relações entre transgeneridade e quimerismo.
4 Os posicionamentos aqui apresentados se baseiam não apenas em leituras, mas em situações cotidianas em
que tivemos a oportunidade de conversar informalmente com pessoas que se autoidentificam como travestis.

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