Travestismos: Gênero e Ficção em Silviano Santiago

AutorSusan Quilan
Páginas75-92
Niterói, v. 9, n. 2, p. 75-92, 1. sem. 2009 75
TRAVESTISMOS: GÊNERO E
FICÇÃO EM SILVIANO SANTIAGO
Susan Quilan
University of Georgia
E-mail: susieq@uga.edu
Resumo: A gênese deste ensaio reside na
procura de compreensão do contexto cultural
em que a literatura brasileira pôde elaborar
configurações de sexualidade, gênero e sexo.
Discussões pós-modernas sobre a outridade
(algumas vezes marcadas por discursos sobre
o travestismo ou “fantasia”) ocupam um lu-
gar central no trabalho crítico e ficcional de
Silviano Santiago, através de materializações
em planos diversos, sejam corporais, políticos
ou psicológicos. Inerentes à discussão do tra-
vestismo, encontram-se os modos individuais
usados para construir o “si-mesmo” e o ou-
tro, tanto em termos de formação identitária
nacional e política, quanto da performance
dessas configurações numa arena mais global.
Palavras-chave: gênero; sexualidade; litera-
tura.
Colocação dos termos
O romance Stella Manhattan e o conto “Você não sabe o que é o amor”/Al-
muaden oferecem exemplos para esta procura, por concentrarem-se nos efeitos de
acontecimentos que criam uma tensão permanente entre realidade e ficção.
Silviano Santiago, nascido em Minas Gerais, passou grande parte de sua vida
no Rio de Janeiro, Paris e Estados Unidos. Publicou cinco romances, cinco obras
críticas, vários volumes de poesia e, em 1997, um livro de contos, intitulado Keith
Jarrett no Blue Note. Recebeu vários prêmios literários, incluindo-se entre eles o
prestigioso Jabuti que premiou Em liberdade como o melhor romance brasileiro de
1982. Os trabalhos literários de Santiago receberam atenções críticas e elogiosas em
países estrangeiros como a França e a Alemanha e, mais recentemente, os Estados
Unidos, com a publicação em 1994 de Stella Manhattan e em 2002 de Nas malhas
da letra. Os temas de Santiago quase sempre incluem estes elementos: um formato
multilinguístico, em que o inglês, o espanhol e o francês se justapõem ao português;
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Travestismos: gênero e ficção em Silviano Santiago
interferências autorais no texto, e vários tipos de relacionamentos entre pessoas do
mesmo sexo, relacionamentos que se situam em planos românticos ou intelectuais,
raramente sexuais. Na maioria das vezes as intrigas das narrativas são descritas em
termos políticos, em algumas de forma mais aberta, em outras de forma menos evi-
dente: as mulheres como o outro ou o marginalizado, como em Stella Manhattan,
homossexuais historicamente conhecidos como ícones culturais (Proust, Artaud), as
responsabilidades do autor e do leitor quanto a se fazer um trabalho legível, bem
como as fortes analogias entre a política, a história política e a constante transfor-
mação da forma do mundo.
O papel do homossexual em exílio e a relação autor-leitor na ficção de Santiago
constituem temas que já foram abordados (Lopes, Foster). Em contrapartida, traves-
tis e mulheres (algumas vezes intercambiáveis, como se tem visto ultimamente) são
temas apenas referidos en passant. Entretanto, travestis em mutações culturais ou
em aspectos literários apontam para o que Marjorie Garber (1992, p. 16) chama de
“crise da categoria [...] uma fenda nas definições de caráter distintivo, uma fronteira
que se torna porosa, um espaço que permite uma transposição dos limites de uma
categoria para a outra”. Da mesma forma que a crítica feminista já demonstrou em
estudos de mulheres escritoras, travestis também podem representar pontes para
ligar a cultura popular à cultura savante. Santiago, como muitos outros escritores
brasileiros das décadas de 1970 e 1980, cria uma literatura em que se “autoparodia”
como escritor-narrador, ao mesmo tempo em que também faz uma paródia do inte-
lectualismo brasileiro em sua reverência às culturas europeias e americana.
Na ficção de Santiago, travestis e mulheres são estereótipos elaborados e que
desaparecem, senão em mistério, pelo menos em circunstâncias misteriosas. Tais
personagens são, de um lado, fortemente cônscias de si mesmas; de outro, sofrem
uma rachadura definitiva que lhes nega qualquer possibilidade de uma real autono-
mia. Estas personagens aparecem inesperadamente nos textos em posições de não
especificidade, não apenas como marcas de uma sexualidade ambígua, mas também
como índices de sistemas culturais em declínio. Sua presença serve para desestabilizar
noções estáveis de binarismo, na medida em que demonstram que “o travestismo é
um espaço de possiblidade que estrutura e confunde a cultura: o elemento disruptivo
que intervém não só como uma crise de categoria masculina ou feminina, mas ainda
como uma crise da própria categoria em si mesma” (GARBER, 1992, p. 7).
O travestismo constitui-se como uma das alternativas usadas por Santiago
para descrever as noções brasileiras de sexualidade e cultura. Não obstante, da
forma em que o termo é empregado neste ensaio, ele inclui e significa mais do que
simplesmente o ato de vestir-se como o sexo oposto, pois conota também o que
Marjorie Garber nomeia como “terceiro”, um modo de articulação, uma maneira de
descrever o espaço da possibilidade. O três questiona a ideia do um: “de identidade,

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