Sobre a trilogia interesse público, interesse privado e interesse social

AutorAcelino Rodrigues Carvalho
Ocupação do AutorAdvogado, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional
Páginas42-54

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Outro ponto que se afigura indispensável para a comprovação da hipótese levantada diz respeito à adequada compreensão da trilogia interesse público, interesse privado e interesse social. Referindo-se à trilogia interesse social, interesse geral e interesse público,

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Rodolfo de Camargo Mancuso60 esboça entendimento segundo o qual é a partir desta que afloram as duas grandes ordens de interesses reconhecidos na atualidade: a ordem individual e a ordem coletiva. Não se pode olvidar, todavia, que, para a correta compreensão dessas duas ordens de interesses há que se considerar, também e primordialmente, a noção de interesse privado.

Com relação ao significado das expressões interesse social, interesse geral e interesse público, são duas as opiniões esboçadas pelo referido autor,61sendo elas aparentemente conflitantes. Na primeira, adverte que, apesar da proximidade conceitual existente entre elas, tomando-se as mesmas a priori como sinônimas, corre-se o risco de, em determinado momento, não se saber exatamente do que se está falando, ou seja, "de qual interesse, em que nível e abrangência"; também segundo ele, não seria satisfatório hierarquizar esses interesses segundo sua abrangência, posto que, desta forma, examinar-se-ia somente seu aspecto lógico-formal. Por outro lado, após apontar algumas distinções e semelhanças, afirma que as expressões são praticamente equivalentes, sendo tão sutis as diferenças existentes entre elas que a sua identificação não traria, do ponto de vista prático, maior contribuição para o estudo da problemática dos interesses metaindividuais.

Contudo, a partir da profundidade com que esse e outros doutrinadores examinam a matéria, verifica-se que é importante ressaltar algumas dessas distinções, inclusive no que diz respeito ao grau de abrangência do interesse, o que, ao nosso sentir, contribui sobremaneira para uma melhor assimilação de alguns aspectos da tutela jurisdicional coletiva, tanto de lege lata, quanto de lege ferenda, e até mesmo para a compreensão da tutela jurisdicional de um modo geral. Antes, porém, de se tentar estabelecer a distinção entre interesse social, interesse geral e interesse público e sua importância,

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analisar-se-á a dicotomia interesse público e interesse privado desde as suas origens até o advento do Estado moderno, especialmente na era liberal clássica.

1.3. 1 Interesse público e interesse privado

A dicotomia interesse público e interesse privado deita suas raízes no Direito Romano, tendo como referencial a frase atribuída a Ulpiano, segundo a qual: "Publicum jus est quod ad stantum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem", significando que o direito público diz respeito ao estado da coisa romana, a polis ou civitas, e o privado à utilidade dos particulares.62 Esta noção, contudo, além de não estar clara, foi sendo transformada, ao longo dos tempos, até se chegar ao significado que lhe é atribuído hodiernamente.

Consoante ensina Tercio Sampaio Ferraz Junior,63 na antigui-dade, a esfera privada compreendia o reino da necessidade humana, onde o homem exercia determinadas atividades com o objetivo precípuo de atender às exigências básicas da sua condição animal: alimentação, vestuário, procriação, etc. Coagido pelas suas necessidades, o homem era obrigado a exercer o labor, atividade destinada a garantir a sobrevivência própria e da família, sendo, por isso, referido pelos teóricos como animal laborans.

O labor não se confundia com trabalho. Consistia num processo contínuo de produção de bens de consumo, assim entendidos aqueles incorporados ao indivíduo logo depois de produzidos, ou seja, bens perecíveis, não permanentes. Para sua produção, utilizava-se como instrumento o próprio corpo ou algo considerado a ele extensivo, como o facão, a foice, etc.

O lugar onde se desenvolvia a atividade laboral era a casa, que também funcionava como a sede da família, sob o comando do pater famílias. A palavra privado tinha, pois, o sentido de privus, do que é

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próprio, significando o ambiente em que o homem, movido por suas necessidades, utilizava a natureza como meio para garantir a subsistência. Aqui não havia liberdade, visto que a necessidade coagia a todos, mesmo o chefe da família.

Ao se tornar livre em relação ao ambiente privado, o homem, agora cidadão (civis), tinha como atividade a ação, cujo desenvolvimento se dava na polis, entre seus iguais. A ação tinha em comum com o labor o fato de também ser ininterrupta, porém o homem que agia o fazia com liberdade, desenvolvendo suas atividades junta-mente com outros cidadãos igualmente livres. Com efeito, a ação se passava onde os homens livres se encontram e se governam. "Daí a idéia de ação política, dominada pela palavra, pelo discurso, pela busca dos critérios do bem governar, das normas de direito. A vida política constituía a esfera pública. Sendo das atividades a mais característica do ser humano, a ação permitiu a idéia de animal político".64Além do labor e da ação, uma terceira atividade era desenvol-vida pelos antigos: o trabalho. Este distinguia-se das outras duas atividades pelo fato de não ser considerado fútil, ou seja, não era contínuo, ininterrupto. No trabalho existia uma relação de meio e fim, tendo, portanto, início, desenvolvimento e termo, caracterizado este pelo objeto produzido.

Com relação apenas ao labor, o trabalho apresenta algumas importantes distinções. Ao contrário daquele, os instrumentos utilizados para o desenvolvimento deste não se confundem com o próprio corpo, e muito menos seu produto que, desta forma, não era considerado de consumo, mas permanente. Além disso, a atividade laboral tinha um sentido de preservação da natureza, na qual o homem amainava a terra, cultivando-a e produzindo alimentos para seu sustento, estando, portanto, nela inserido; já o trabalho era considerado uma atividade violenta, porquanto a matéria natural dava origem a algo novo e permanente.

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Com efeito, tem-se aqui a idéia de fazer, de fabricar: cria-se um mundo humano distinto da natureza dominada pelo homem. O homem trabalhador é denominado homo faber e se coloca em uma posição intermediária entre a esfera privada e a esfera pública, conquanto esteja mais próximo desta. Ao contrário do animal laborans e do animal político, o homo faber era solitário, somente mantendo contato com as demais pessoas por ocasião da venda de seus produtos. Aqui, ganha importância a idéia de mercado, já que o artesão exercia uma atividade para toda a comunidade e não apenas para o âmbito privado, como o animal laborans.

Em suma, na antiguidade, jus publicum referia-se ao lugar da ação, do encontro dos homens livres que se governam, do homem considerado um animal político; de outra parte, jus privatum significava a casa, sede da família, ambiente doméstico próprio onde o homem...

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