A tutela coletiva do meio ambiente do trabalho

AutorMaria da Graça Bonança Barbosa
CargoJuíza do Trabalho da 15ª Região desde 1993, como titular da 4ª Vara de São José dos Campos desde 1998 e da 5ª Vara de São José dos Campos desde 2010, tendo autuado como Juíza Convocada do TRT até 2008. É especialista em Direito Civil, mestre em Direito do Trabalho e doutoranda em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo ? SP
Páginas210-227

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A quem pertence o ar que respiro?

Cappelletti1

Introdução

A famosa frase do jurista italiano bem sintetizou a perplexidade dos operadores de direito que frente aos novos interesses e direitos, não encontravam meios de tutela, pois interesses e direitos que não eram de ninguém especificamente, não poderiam ser postulados em juízo, em razão de o ordenamento jurídico ser estruturado para solucionar apenas as demandas relativas a direitos individuais.

O presente artigo traça um comparativo entre a realidade que exigia a tutela daqueles que eram chamados de novos interesses e direitos e a estruturação do ordenamento, avançando sobre a própria cultura dos estudiosos e operadores do direito.

A questão ambiental é apontada como fundamental para a evolução que se seguiu no âmbito do processo, não obstante as relações de consumo, antes sem qualquer proteção, também fizessem parte das preocupações dos juristas a partir da segunda metade do século XX.

O meio ambiente do trabalho é destacado como integrante do meio ambiente como um todo e cuja proteção visa, tal como ocorre em todas as questões afetas à natureza e à ecologia, a preservação da própria espécie humana.

Nesse contexto, são apresentadas duas premissas, como pressupostos para melhor entender-se os conflitos relativos ao meio ambiente do trabalho, a transindividualidade e a interconexão entre interesses e direitos objeto da tutela coletiva.

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Finalmente, a conclusão pontua a importância do papel da jurisprudência em matéria de meio ambiente do trabalho, na busca de soluções práticas que, mais que reparar, efetivem interesses e direitos coletivos dos trabalhadores.

1. O descompasso entre as lesões de massa e os ordenamentos moldados para a tutela do direito individual

As sociedades contemporâneas, marcadamente urbanas e consumistas, acarretaram mudanças na vida dos homens, quanto às suas necessidades, interesses e direitos, pois os atos humanos passaram a trazer riscos potenciais de danos às pessoas e ao meio ambiente, fenômeno que se intensifica em todo o mundo no século XX e que passa a ser objeto dos estudos de juristas italianos a partir da década de 70.

Mauro Cappelletti foi um dos juristas a chamar a atenção da comunidade jurídica para a necessária proteção desses novos interesses e direitos2, que envolviam não apenas as pessoas, mas a própria natureza, como o ar que respiramos, bem como para o fato de não ser mais suficiente que o Estado assegurasse apenas o direito subjetivo de ação.

A evolução da própria concepção de acesso à Justiça, que passou do conceito meramente formal próprio dos Estados Liberais do final do século XVIII para um modelo mais próximo de acesso a uma ordem jurídica justa3, e ainda, de que o acesso à Justiça é o mais elevado valor a ser considerado no processo, foi, assim, fundamental para viabilizar a tutela dos novos interesses e direitos coletivos no sentido lato4.

O processo na sua concepção individualista foi o principal obstáculo a ser transposto, exigindo uma nova e criativa visão de institutos tradicionalmente concebidos pela legislação, doutrina e jurisprudência, como a legitimidade de agir, o interesse processual e os efeitos da coisa julgada, além da extensão do dano e a execução da sentença, sendo necessária uma mudança da própria cultura jurídica, pois também estratificados na mente dos operadores do direito.

A ideologia individualista, contrária à participação dos grupos intermediários na vida da sociedade, positivada pela Constituição promulgada pela Emenda n. 1/19695 e pelo art. 6º do CPC6, também constituía uma barreira à defesa coletiva de interesses e direitos que pertenciam exatamente a grupos, classes ou categorias e não a um individuo plenamente identificado.

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Assim era a própria concepção do processo que teria de ser alterada para viabilizar a tutela dos novos interesses e direitos coletivos — decorrência do fato de o processo e seus principais institutos e, em especial, a ação, terem sido concebidos a partir da teoria individual e liberal do século XIX7, cuja origem foi fundada nas duas Revoluções Liberais do século XVIII nos Estados Unidos e na França, nos anos de 1779 e 1789, respectivamente.

A “herança individualista marca ainda hoje os instrumentos com que costumamos operar”, como constatou Barbosa Moreira que ainda fez, com perspicácia, uma avaliação sobre como os operadores do direito estudavam e aplicavam as normas jurídicas:

[...] as concepções tradicionais miravam em regra situações de confronto entre indivíduos isolados, ou dispostos em grupos bem definidos. Do legislador esperava-se que disciplinasse, e do juiz que declarasse, direitos e obrigações atribuídos em termos bem precisos a titulares fáceis de identificar. Era a uma pessoa, ou a um número conhecido e fechado de pessoas, que se reservava o lugar de honra, assim nas vicissitudes jurídicas puramente particulares, como nos episódios que envolviam o Estado, ele próprio convertido, pelo requinte da técnica, em pessoa singular.8Interesses e direitos coletivos estão ligados a uma coletividade, que podem se apresentar com titulares indetermináveis, tal como ocorre nas questões relativas ao tal como ocorre nas questões relativas aotal como ocorre nas questões relativas ao tal como ocorre nas questões relativas aotal como ocorre nas questões relativas ao meio ambiente
meio ambiente
meio ambiente
meio ambiente
meio ambiente que, mesmo localizadas no espaço, têm consequências que se irradiam para toda a comunidade e, agora já se admite, para todo o mundo, ou ainda serem pertinentes a titulares determináveis, integrantes de grupos, classes ou categorias que unem determinadas pessoas em razão de uma comunhão de interesses.

Ou seja, se os novos interesses e direitos eram coletivos e, portanto, em boa parte pertencente a grupos, classes e categoriais de pessoas, e se somente o indivíduo era detentor do direito de ação e, ainda assim, para defender direito próprio, sendo a exceção a legitimação extraordinária, a consequência é que os interesses coletivos não seriam tutelados, pois não chegariam sequer ao Judiciário.

Nesse sentido, usando um tom até mesmo pessimista, mas que serviu para motivar os mais atentos juristas, asseverou Mauro Cappelletti:

[...] continuar, segundo a tradição individualista do modelo oitocentista, a atribuir direitos exclusivamente a pessoas individuais — como, por exemplo, ao proprietário vizinho, no caso de abusiva construção edilícia, ou ao adquirente pessoalmente prejudicado no caso da fraude alimentar perpetrada em larga escala por um fabricante — significaria tornar impossível uma efetiva proteção jurídica daqueles direitos, exatamente na ocasião em que surgem como elementos cada vez mais essenciais para a vida civil.9

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E Barbosa Moreira, jurista foi atento à realidade social e de visão vanguardista do direito, demonstrou sua preocupação frente a um sistema processual concebido e manejado para a solução do conflito individual e que, portanto, não possibilitava a defesa de interesses e direitos coletivos, afirmando:

[...] tem sabor de lugar-comum a observação de que a estrutura clássica do processo civil, tal como subsiste na generalidade dos ordenamentos de nossos dias, corresponde a um modelo concebido e realizado para acudir fundamentalmente a situações de conflito entre interesses individuais. O campo de eleição dos instrumentos tradicionais de tutela judiciária é o das relações obrigacionais, com a rotineira contraposição entre duas pessoas, uma das quais se atribui a condição de credora e reclama do suposto devedor certa prestação.10A concepção filosófica do homem enquanto ser abstrato, e nessa condição sujeito de direitos proclamados e formalmente declarados, cede lugar para outra dimensão em que não se concebe mais esse homem como ser ausente de concretude, mas sim o homem enquanto cidadão, trabalhador, pessoa, em suas múltiplas perspectivas e necessidades, o que é corroborado pela lição trazida do direito comparado por Humberto Theodoro Júnior:

Trocker, analisando as Constituições da Alemanha e da Itália, assinalou, com toda precisão, que a imagem do homem, naquelas cartas, não era mais a do indivíduo solitário e isolado, que decidia soberanamente seu destino, mas sim “quella della persona umana dotata si de un proprio valore, ma legata da vincoli ed impegni allá comunità in cui vive”.11Essa mudança de perspectiva do homem, primeiro filosófica e depois jurídica, ocorrida no momento em que os direitos sociais e, portanto, coletivos, foram inseridos nas principais declarações de direitos internacionais e, finalmente, consagrada pelas modernas Constituições do século XX, não mais se coadunava com o modelo processual cristalizado por meio das grandes codificações, inspiradas pela concepção individualista, racionalista e positivista do século XIX.

Se a teoria do direito e do processo eram concebidas com base no indivíduo, os juristas também tinham uma visão individualista do ordenamento e é por essa razão que Barbosa Moreira falava em iniciar um “trabalho de adaptação” e de um “esforço de imaginação criadora” para possibilitar a tutela de interesses cuja “dimensão extravasava a dimensão interindividual”12 e Ada Pellegrini Grinover conclamava os demais processualistas a terem “a coragem intelectual de admitir que hoje afloram no processo situações diversas daquelas que constituíam o suporte dos institutos tradicionais”13.

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