A Tutela coletiva no Brasil e a sistemática dos novos direitos

AutorHumberto Dalla Bernardina De Pinho
CargoPós-Doutor em Direito (University of Connecticut School of Law). Mestre, Doutor em Direito e Professor Adjunto de Direito Processual (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Promotor de Justiça Titular no Estado do Rio de Janeiro.
Páginas1-22

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I Novos direitos

Muito se tem falado ultimamente sobre os chamados "novos direitos"1.

A evolução social, as transformações tecnológicas, as descobertas científicas e o fenômeno da globalização, entre outros, são fatores que têm levado os juristas a pensar e classificar os direitos em novas categorias, de modo a sistematizar seu estudo e manter a ciência jurídica atualizada e efetiva.

Norberto Bobbio2 já identificava esse fenômeno desde o fim da década de oitenta, e sustentava que eles materializavam as novas demandas da sociedade.

Em verdade, como bem observa Teori Albino Zavascki,3 já no decorrer do século XVIII começava a tomar corpo a idéia dos "direitos fundamentais" que se Page 2 tornaram universais com a Declaração dos Direitos do Homem, durante a Revolução Francesa, cujo lema trazia os postulados básicos desse novo pensamento: liberdade, igualdade e fraternidade.

Dessa forma, o século XIX foi marcado pelo ideal de liberdade, que se constituiu no direito de "primeira geração". Ao fim deste século, com a crise do Estado Liberal, a doutrina desenvolve a igualdade, como direito de "segunda geração", consubstanciada nos direitos econômicos e sociais. Surge, assim, o Estado do bem-estar social.

Já no século XX, com a crise dos direitos sociais, ocasionada por sua inefetividade, passa-se a dar especial atenção à fraternidade e à solidariedade, consolidando, assim, os direitos de "terceira geração".

Essa é a sistematização clássica. Contudo, na visão de autores como Ingo Sarlet4 e Paulo Bonavides5, é mais adequado falar em dimensões, ao invés de gerações, uma vez que uma dimensão não substitui a outra, não a apaga ou destrói, apenas a complementa. Por outro lado, os autores pátrios hoje vêm classificando em cinco, e não mais em apenas três, as "dimensões" desses novos direitos.

Nessa linha, de primeira dimensão são aqueles direitos individuais, vinculados à liberdade, igualdade, propriedade, segurança e às diversas formas de opressão. Na lição de Wolkmer6, "são direitos inerentes à individualidade, tidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, que por serem de defesa e serem estabelecidos contra o Estado, têm especificidade de direitos negativos". Page 3

Direitos de segunda dimensão são aqueles fundados no princípio da igualdade. Têm alcance social, econômico e cultural; são direitos "positivos". Na precisa lição de Celso Lafer7 são "direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade".

De terceira dimensão são os direitos coletivos e difusos, oriundos da solidariedade. Há aqui uma divergência em sede doutrinária, como assinala Wolkmer8:

"Ao reconhecer os direitos de terceira dimensão é possível perceber duas posições entre os doutrinadores nacionais: a) interpretação abrangente acerca dos direitos de solidariedade ou fraternidade (Lafer, Bonavides, Bedin, Sarlet) - incluem-se aqui os direitos relacionados ao desenvolvimento, à paz, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente sadio, à qualidade de vida, o direito de comunicação etc.; b) interpretação específica acerca de direitos transindividuais (Oliveira jr.) - aglutinam-se aqui os direitos de titularidade coletiva e difusa, adquirindo crescente importância o Direito Ambiental e o Direito do Consumidor."

Os direitos coletivos em sentido lato vêm ocupando posição de destaque no ordenamento dos diversos países9. É cada vez maior a preocupação com as demandas coletivas, o que exige do jurista preparo adequado para lidar com essas questões, utilizando, desde a doutrina constitucional clássica até os mais modernos postulados do direito processual.

Por fim, direitos de quarta dimensão são aqueles referentes à biotecnologia, bioética e regulação da engenharia genérica. E, direitos de quinta dimensão, são aqueles advindos das tecnologias de informação, Internet, ciberespaço e realidade virtual em geral. Page 4

Sistematizados os novos direitos, passamos a nos dedicar agora àqueles de terceira dimensão, na concepção estrita. Veremos um abordagem história sobre esses direitos no Brasil, considerações nos âmbitos material e processual e, por fim, teceremos rápidas conclusões quanto à sua efetividade.

II Escorço histórico da tutela coletiva

A previsão da possibilidade de propositura de ações coletivas no Brasil é recente. A lei da Ação Civil Pública, de 1985, foi a primeira a tratar efetivamente do tema, inaugurando uma nova fase do processo civil, em que se começa a abandonar a visão individualista do processo e passa-se a vê-lo como apto a tutelar também interesses coletivamente considerados.

Antes da lei da Ação Civil Pública, o único instrumento à disposição dos jurisdicionados para a defesa dos interesses coletivos era a ação popular, introduzida em nosso ordenamento pela Constituição Federal de 1934 e pela Lei Federal nº 4.717/65.

Todavia, tal ação não era suficiente para assegurar uma efetiva tutela dos interesses coletivos; primeiro, porque o seu objeto era limitado, se restringindo, naquela época, às matérias concernentes ao patrimônio público e à moralidade administrativa (não podendo, por conseguinte, a ação ser utilizada para proteção da infância e da juventude, dos direitos dos consumidores, de classes de trabalhadores, entre outros); e, segundo, porque o cidadão geralmente se encontrava em situação de desvantagem perante os entes públicos réus na ação popular, que invariavelmente possuíam melhores recursos para se defender adequadamente em juízo. Page 5

Desse modo, temos que apenas com o advento da Lei da Ação Civil Pública, em 1985, a tutela dos direitos coletivos lato sensu passou a ser efetiva10.

Isso porque a Lei da Ação Civil Pública ampliou as hipóteses de cabimento de demandas visando à tutela dos direitos difusos e coletivos, podendo tal ação ser utilizada não somente para a proteção do patrimônio público, que já era tutelável via ação popular, mas, da mesma forma, para a proteção do meio ambiente, dos consumidores, bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, bem como qualquer interesse difuso ou coletivo11.

A Lei da Ação Civil Pública foi seguida pela Lei 7853/89, que disciplina especificamente a tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos de pessoas portadoras de deficiência, e pela Lei 7913/89, que prevê a ação civil pública de responsabilidade por danos a investidores do mercado de valores mobiliários.

Depois, mister fazer referência à Constituição Federal de 1988, que teve papel fundamental na tutela dos direitos coletivos lato sensu, uma vez que ampliou o objeto da ação popular, permitindo a sua utilização também para a preservação do meio ambiente e da moralidade administrativa; previu a possibilidade de mandado de segurança coletivo; e por fim dispôs expressamente sobre a legitimidade para tanto12. Page 6

Posteriormente, temos a edição do E.C.A. (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que contemplou a viabilidade da ação civil pública por ofensa a direitos da criança e do adolescente.

Logo após, foi editado o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.90), que alterou diversos dispositivos da Lei da Ação Civil Pública e também regulamentou no ordenamento pátrio a ação coletiva nos seus artigos 91 a 100.

Importante ainda apontarmos a edição da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), que visa ao combate dos atos ilícitos praticados por funcionários públicos no exercício de suas funções, criando mecanismos para a repressão a esses atos e a devolução aos cofres públicos das quantias desviadas de suas finalidades originais; da Lei nº 8.884/94 (Lei Antitruste), que dispõe sobre a prevenção e a repressão de infrações econômicas, e da Lei 8.974/95, que estabelece normas de proteção à vida e à saúde do homem, dos animais, das plantas, bem como do meio ambiente.

Por fim, o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003) cria uma série de normas protetivas às pessoas maiores de sessenta anos, bem como regulamenta o uso da ação civil pública para a defesa dos interesses desses indivíduos, como veremos adiante.

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III Direitos transindividuais. terminologia

Iniciaremos o estudo analisando as modalidades de direitos coletivos, de acordo com as definições fornecidas pelos incisos do parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor.

Os direitos ou interesses difusos são conceituados no art. 81, I do Código de Defesa do Consumidor como sendo "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".

Rodolfo de Camargo Mancuso, com base na conceituação legal acima apontada, indica como características básicas de tais interesses a indeterminação dos sujeitos, a indivisibilidade do objeto, a intensa conflituosidade, e a sua duração efêmera13.

Com relação à indeterminação dos sujeitos, temos que os interesses difusos dirão respeito a um grupo indeterminado ou dificilmente determinável de sujeitos. Justifica-se a tutela dessa espécie de direitos, ainda de acordo com o magistério de Rodolfo de Camargo Mancuso, a partir do raciocínio de que se o interesse individual merece a tutela do Direito, com mais razão ainda a merece o interesse de muitos, ainda que os seus titulares não possam ser identificados precisamente.

A lesão a esses direitos, por conseqüência, também atingirá um número indeterminado de pessoas, que pode ser tanto uma comunidade, quanto uma etnia, ou mesmo um país inteiro. Assim, temos que "os interesses difusos situam-se no 'extremo oposto' dos direitos subjetivos, visto que estes apresentam como nota básica o 'poder de exigir', exercitável por seu titular, contra ou em face de outrem, tendo por objeto certo bem da vida"14. Page 8

Quanto à indivisibilidade do objeto, a satisfação dos interesses difusos a um indivíduo implica necessariamente na satisfação de outros...

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