Tutela jurisdicional das liberdades

AutorProf. J. J. Calmon de Passos
CargoProfessor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)
Páginas1-12

Professor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS). Advogado em Salvador.

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1. A opção por um enfoque além do jurídico-dogmático

O tema sugere, de logo, uma resposta à indagação sobre que meios estão disponíveis aos cidadãos para que tornem efetivas, via Poder Judiciário, as liberdades que lhes foram constitucionalmente asseguradas. Matéria, portanto, suscetível de abordagem dogmático-exegética, sem dúvida pertinente e até indispensável. Fugirei, entretanto, de assim proceder. Tenho uma série de razões para isso. Em primeiro lugar, muitos já o fizeram, tantos e tão bem, que mais não poderia senão repeti-los ou inserir-me num processo de mutua citação e mutuo louvor, bem pouco construtivo. Além disso, insistir nesse enfoque será de clamorosa inutilidade, por sua inadequação para favorecer o entendimento do que socialmente real, a par de sua impotência para suscitar mudanças na ordem prática. Repugna-me atribuir ao jurista o papel de autor de contos da carochinha, escrevendo sobre fadas madrinhas, duendes, gnomos, bruxas e fantasmas, ou de seus personagens, mesmo quando revestido da boa intenção de tornar mais ameno o sono e o sonho dos homens. Se o nosso gênero não é a ficção, nem pretendemos ser fabulistas fantasiados de homens de ciência, ou contadores de estórias com roupagem de estadistas, precisamos baixar à terra, enlamear os pés, fatigar o corpo e calejar as mãos.

Por todos esses motivos, dispenso-me de falar-lhes, prioritariamente, das garantias que a Constituição Federal institucionalizou para proteção das liberdades por ela enunciadas, ou como postulá-las de modo tecnicamente correto perante o Poder Judiciário. Já se escreveu torrencialmente sobre o assunto e quase nada teria a dizer, salvo me propusesse apenas a originalidade do personagem do conto de Monteiro Lobato que, pretendendo Page 2 ser diferente, agradeceu o livro que lhe haviam emprestado nestes termos "O livro li, muito gostei". Infelizmente, se não tivermos cuidado, corremos o risco de escrever sobre temas jurídicos apenas colocando em ordem inversa radical, confusa, o já ensinado por outros, com clareza, na ordem direta. Daí a abordagem por mim preferida que, entretanto, nem é mais excelente nem menos exposta a erros que as demais, pelo só motivo de pretender ultrapassar os limites do dogmático-exegético. Antes, pelo que revele de ambicioso, pode representar para mim o risco de incidir no equívoco do sapateiro que desejou ir além das botas e mereceu a justa advertência de que deveria voltar ao seu tamborete de remendão.

2. A liberdade só é pensável pensando-se a não-liberdade

Na linha que me propus, a primeira ponderação a ser feita é sobre a impossibilidade de podermos compreender a liberdade sem antes refletirmos sobre a "não-liberdade". Descomprometido, embora, com qualquer profissão de fé na dialética ontológica hegeliana, creio ser inviável definir-se ou delimitar-se algo prescindindo-se de colocá-lo em face ou em confronto com o que é a sua negação. Entendida exclusivamente como poder de autodeterminação inerente a todo homem, por força do qual direciona sua conduta, a liberdade é um contínuo e pleno operar de um ente capaz de opções, sem lacunas e sem obstáculos, descomportando, conseqüentemente, problematização. Esta se faz apenas necessária e relevante por motivo das inelutáveis "limitações" com que se defronta. Obstáculos oferecidos pela Natureza, a par dos que os homens se colocam uns aos outros Os problemas da liberdade são, pois, na sua essência, "problemas de não-liberdade". Os limites impostos pela Natureza escapam ao interesse imediato do jurista. As ciências de que ela é objeto têm buscado soluções para removê-los. Relevantes para nós se mostram exclusivamente os óbices que os homens reciprocamente se colocam à liberdade. Nossa reflexão concentrar-se-á, portanto, na problemática dos obstáculos postos socialmente à liberdade do indivíduo. Limitações imprescindíveis, frise-se, visto como, sem elas, a convivência humana se inviabilizaria. Precisamente a resistência a esses limites é que determina a conflituosidade social, razão de ser do Direito.

3. Liberdade e não-liberdade social

Entendida a liberdade como capacidade de determinação da conduta mediante opções, nessa idéia está implícita a exigência de escolha entre ações possíveis, o que implica a ponderação de alternativas. Assim, todo ato de liberdade é também, e necessariamente, um ato de não-liberdade, autolimitação da liberdade, por força da exclusão, pelo ator, das opções rejeitadas. Por outro lado, se uma relação de liberdade diz respeito necessariamente a uma série de no mínimo duas ações, ou tipos de ações alternativas, a não-liberdade, ao revés, é determinante - eu sou "não-livre" para fazer algo definido, sem opção. Uma não-liberdade alternativa seria a negação de si mesma. Disso concluímos que apenas a não-liberdade é suscetível de Page 3 institucionalização e de coerção. A liberdade, por força de sua própria natureza, é incompatível com qualquer tipo de imposição, visto que obrigar alguém a ser livre implicará em privá-lo de sua liberdade. Como já salientado, todo ato de liberdade implica sua compreensão também em termos de não-liberdade, dado que, entre as alternativas possíveis, uma foi eleita e as demais rejeitadas pelo ator. Essa rejeição, contudo, ainda não configura autolimitação da liberdade, pois a escolha se consumou em decorrência de valoração feita pelo ator, tendo em vista interesses que apenas lhe dizem respeito. Antes de haver perda, houve proveito, o da realização do ato cujo resultado é a vantagem de que é beneficiário o próprio indivíduo. Também esta é uma dimensão da liberdade que escapa ao interesse imediato do jurista. Para ele, relevante é a liberdade social, relação de interação entre pessoas ou grupos, ou seja, o fato de que um ator deixa outro ator livre para agir de determinada maneira. Esse conceito, entretanto, para ser definido, pede, também, como visto antes, seja feita referência a outra relação de interação, a de "não-liberdade interpessoal ou social."

4. Autolimitação e não-liberdade social

Somos socialmente livres quando inexiste algum agente em condições de nos obstar de fazer aquilo que nos dispúnhamos a fazer. Só ex post facto, portanto, é que é possível determinar se um ator era não-livre para fazer aquilo que na realidade acabou fazendo. Em princípio, um ator é livre para agir da forma que mais lhe agrade, contanto que não exista um outro ator que o torne não-livre para levar a bom termo alguma dessas ações. Ser livre para fazer X ou Z implica a inexistência de outro ator em condições de tornar impossível ou passível de pena quem podia optar por fazer X ou Z. A par dessa nãoliberdade, que resulta da resistência oferecida pelo outro ao exercício de nossa liberdade, podemos nós mesmos, por deliberação pessoal, excluir, dentre as alternativas que nos colocamos, aquelas que se nos afiguram menos favoráveis ou mais nocivas aos outros. Cuida-se de uma autolimitação diferente da precedentemente analisada, porque, neste contexto, as ações excluídas o foram por força de valoração em que o outro, com quem interagimos, foi levado em consideração. Individual em sua implementação é social em seu alcance. Ainda quando relevante e socialmente eficaz é, contudo, insuficiente, por si só, para oferecer a segurança que a convivência humana reclama, donde ser fundamental a heterolimitação.

5. Heterolimitação da liberdade e poder

A não-liberdade, em sua dimensão social, diversamente do que se passa com a liberdade, precisa, fundamentalmente, para existir e operar, da heterolimitação, visto como a autolimitação da liberdade, como já salientado, é impotente e insuficiente para gerar segurança social em termos satisfatórios. A não-liberdade social requer, para existir, que alguém recuse adesão ao limite que o...

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