Um corpo sem carne: considerações críticas sobre os limites do 'materialismo' de Judith Butler

AutorCaynnã Santos, Virgínia Ferreira
Páginas248-265
2GÊNERO | Niterói | v. 22 | n. 2 | p. 2-2 | 1. sem 2022
EDITORIAL
2
EDITORIAL
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
Luciana Zucco e Teresa Kleba L isboa, ambas da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida,
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Serão apresentadas discus-
sões sobre gênero e a interseccionalidade entre raça e classe; sexualidade;
violência; migração feminina; encarceramento de mulheres; e suas inter-
faces com as políticas públicas, visando contribuir para o aprofundamento
dos estudos sobre a temática no serviço social. Esses estudos são de
grande relevância em um contexto de graves retrocessos no campo das
políticas públicas e de avanço do racismo e da violência contra mulheres,
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais devido ao neoconservado-
rismo e ultraneoliberalismo que dominam o Estado brasileiro.
Ademais, esta edição conta com uma série de artigos de temas livres,
como adoção por casais do mesmo sexo; mulheres e esporte; participação
feminina na democracia portuguesa; feminismo negro; abor to; e trabalho
doméstico. Oferece, ainda, duas resenhas: uma sobre o livro E se fosse você?
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de Manuela d’Ávila;
eoutra sobre o livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano,
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos a todas
e todos, da comunidade acadêmica ou não, que possuem interesse pelos
estudos de gênero a desfrutar de uma ótima leitura.
Equipe editorial:
João Bosco Hora Góis
Kamila Cristina da Silva Teixeira
Sidimara Cristina de Souza
GÊNERO | Niterói | v. 23 | n. 1 | p. 248-265 | 2. sem 2022
248
UM CORPO SEM CARNE: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE OS
LIMITES DO “MATERIALISMO” DE JUDITH BUTLER
Caynnã Santos
Virgínia Ferreira
RESUMO: A teoria da performatividade de gênero tal como proposta por
Judith Butler é acusada de por vezes flertar com determinada semiologização
irrestrita do mundo, dando forma a um posicionamento sobre o corpo que
parece elidir sua concretude. No presente ensaio, debruçamo-nos sobre os
sentidos atribuídos por Butler à noção de materialidade corporal, privilegiando
a análise crítica de suas teorizações em seu hoje clássico Bodies That Matter
(1993), obra que ganhou recentemente sua primeira edição em língua portu-
guesa. Filiando-nos à polêmica em torno do “materialismo falho” butleriano,
identificamos duas “modalidades de materialidade” em seus escritos, sendo
ambas, argumentamos, limitadas por certa inclinação exacerbada ao discursivo.
Por fim, defendemos, em confluência com os recentes desenvolvimentos
neomaterialistas, a necessidade de resgate/construção de uma noção de
materialidade corporal situada além da inconcretude que permeia muitas
das atuais considerações feministas pós-estruturalistas sobre os corpos.
PALAVRAS-CHAVE:Judith Butler; matéria; corpo; teoria feminista.
ABSTRACT: The theory of gender performativity as proposed by Judith
Butler is accused of flirting with anunrestricted ‘semiologization’ of the world,
positioning the body in a way that elidesits concreteness. In this essay, we
focus on the meanings attributed by Butler to the notion of “materiality of
the body”, as presented in her classicBodies That Matter(1993), which has
recently received its first translation into Portuguese. Joining the polemic
concerning Butler’s ‘failed materialism’, we identify that the author mobilizes
two “modalities of materiality” in her writings, both of which, we argue, are
considerably limited by an exaggerated inclination toward the discursive.
Finally, we advocate, following insights from new materialist scholars, the
need to rescue/construct a notion of corporeal materiality situated beyond
the lack of concreteness that pervades many of the current poststructuralist
feminist considerations about bodie.
KEYWORDS: Judith Butler; matter; body; feminist theory.
ARTIGO DE TEMA LIVRE
2GÊNERO | Niterói | v. 22 | n. 2 | p. 2-2 | 1. sem 2022
EDITORIAL
2
EDITORIAL
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
Luciana Zucco e Teresa Kleba L isboa, ambas da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida,
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Serão apresentadas discus-
sões sobre gênero e a interseccionalidade entre raça e classe; sexualidade;
violência; migração feminina; encarceramento de mulheres; e suas inter-
faces com as políticas públicas, visando contribuir para o aprofundamento
dos estudos sobre a temática no serviço social. Esses estudos são de
grande relevância em um contexto de graves retrocessos no campo das
políticas públicas e de avanço do racismo e da violência contra mulheres,
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais devido ao neoconservado-
rismo e ultraneoliberalismo que dominam o Estado brasileiro.
Ademais, esta edição conta com uma série de artigos de temas livres,
como adoção por casais do mesmo sexo; mulheres e esporte; participação
feminina na democracia portuguesa; feminismo negro; abor to; e trabalho
doméstico. Oferece, ainda, duas resenhas: uma sobre o livro E se fosse você?
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de Manuela d’Ávila;
eoutra sobre o livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano,
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos a todas
e todos, da comunidade acadêmica ou não, que possuem interesse pelos
estudos de gênero a desfrutar de uma ótima leitura.
Equipe editorial:
João Bosco Hora Góis
Kamila Cristina da Silva Teixeira
Sidimara Cristina de Souza
GÊNERO | Niterói | v. 23 | n. 1 | p. 248-265 | 2. sem 2022 249
INTRODUÇÃO
Fato é que os escritos de Judith Butler figuram hoje como um edifício
teórico incontornável para públicos especializados ou não cujos interesses se
situam em temáticas caras aos estudos de gênero e sexualidade. Sua produção
teórica desconcertante, como bem adjetivaram Leandro Colling e Larissa
Pelúcio (2015), aliada à sua incansável disposição a se fazer praticamente ubíqua
nos mais relevantes e prementes debates públicos da atualidade, renderam à
Queen of Gender, como coroada por Gayle Rubin (2003), um contingente
de dedicadas/os admiradoras/es que só rivaliza, em número, à quantidade
de suas/seus ferrenhas/os detratoras/es. Os “amores e ódios” que a prática
político-teórica de Butler inspira, evidenciados de modo explosivo na última
visita da pensadora ao Brasil no ano de 2017, podem ser interpretados como
sintomáticos não apenas da incompreensão de suas teorias – fator indubita-
velmente central quando analisamos os lamentáveis protestos e ataques dos
quais a filósofa foi vítima em nosso país –, mas também parecem expressar
a ambiguidade e passionalidade características das formas de tratamento
reservadas às/aos grandes intelectuais de nosso tempo.
O presente ensaio, nos antípodas de um esforço voltado para a análise da
recepção brasileira dos estudos queer, dos trabalhos de Butler ou dos sentimentos
que públicos especializados ou não nutrem acerca da figura da autora, elege
como seu objeto de interesse os sentidos atribuídos nos escritos da pensadora
norte-americana à noção de matéria. Especificamente, objetivamos oferecer
uma visada crítica acerca das teorizações butlerianas da materialidade corporal,
tomando seu hoje clássico Bodies that Matter (1993) – texto que, oportuna-
mente, ganhou há pouco sua primeira edição em língua portuguesa (BUTLER,
2019) – enquanto obra prioritária, porém não exclusiva, de análise. Com isso,
pretendemos apresentar um pequeno contributo para a longeva polêmica
feminista acerca daquilo que Vicki Kirby (2006) nomeou de “materialismo
falho” proposto pela filósofa. Mediante nossas leituras, identificamos que
Butler mobiliza dois entendimentos particulares de matéria, sendo ambos,
argumentamos, limitados consideravelmente por certa inclinação exacerbada
ao discursivo, marca de determinadas vertentes do pós-estruturalismo que,
por vezes, flertaram com uma espécie de semiologização irrestrita do mundo.
Nossas discussões aqui expostas – potencialmente reconhecíveis como
envoltas em certo teor “iconoclasta”, dado o fato de se endereçarem a propostas
daquela que figura como uma das autoras feministas de maior aceitação por parte

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT