As constituições da era Vargas: uma abordagem à luz do pensamento autoritário dos anos 30

AutorFernanda Xavier da Silva
CargoMestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas
Páginas259-288

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Introdução

A primeira metade do século XX caracterizouse mundialmente como um período de ampla instabilidade econômica, social e política; momento de eclosão das duas guerras mundiais associado

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à maior crise econômica da história. Denominada Era da Catástrofe, assinalou uma conjuntura de grandes reavaliações e mudanças, quando o regime liberal entrou em colapso e três opções lutaram pela hegemonia intelectual política: 1) o comunismo; 2) o capitalismo reformado, associado com a socialdemocracia dos movimentos trabalhistas não comunistas; e 3) a direita, junto a qual se sobressaiu sua versão radical identificada no nazifascismo. Contrariando as expectativas que acreditavam que a depressão econômica pudesse abrir espaço para o avanço da esquerda, o início do século XX assinalou o refluxo da economia mundial e a ascensão dos nacionalismos radicais de direita responsáveis pela completa redefinição dos princípios norteadores do mundo (HOBSBAWN, 2003)1.

O Brasil, a reboque desse contexto, vivenciou uma grave crise econômica, política e social que teve como resultado a derrubada da Primeira República, e a posterior introdução da ditadura do Estado Novo. A despeito dessa semelhança, a crise brasileira foi menos um reflexo da crise internacional e mais um produto das condições vigentes internamente. Questionavase, aí, a orientação agrárioexportadora de nossa economia, entendida como responsável pela manutenção da dependência externa e vulnerabilidade econômica do país; criticavase o excesso de federalismo da Constituição de 1891, por permitir a prática de políticas particularistas que criavam e reproduziam um sistema social desigual; e, por último, assistiase à formação de movimentos oposicionistas propondo a quebra do monopólio político das oligarquias e a incorporação das classes emergentes, uma vez que o crescimento das cidades e a diversificação da economia (sobretudo ante a crise de 1929) geraram novas forças sociais incompatíveis com a política vigente. Logo, o cenário mundial agiu apenas no sentido de tornar patente um problema já latente no país (FAUSTO, 2002).

Como no mundo, foi em torno dessas três alternativas que o pensamento brasileiro se estruturou. Encabeçando a posição de

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esquerda tínhamos o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e a ele diretamente relacionada a ANL (Aliança Nacional Libertadora) (GOMES VIANNA, 1990). Representando a via capitalista democrática destacavamse alguns pensadores, como Nestor Duarte e Sérgio Buarque, mas ainda de pouca influência política (PIVA, 2000). Já na direita encontrávamos um amplo arranjo de ideias autoritárias composto por diversos autores e grupos com feições e projetos variados (exemplo o integralismo de Plínio Salgado e o pensamento católico de Tristão Athaíde), (BEIRED, 1999). Pelo número e grau de sistematização dessas ideias, aliado à inexistência de autêntica ideologia liberal e, em conseqüência, ausência de antagonismos de classe necessários à organização do proletariado2, somados ao contexto mundial de refluxo do liberalismo, aqui também a direita foi a opção que obteve maior destaque.

Entre os anos de 1914 e 1945, o país assistiu a formação de uma nova direita nacionalista que, face ao contexto de crise vigente, desenvolveu uma inflexão do nacionalismo dotandolhe de contornos autoritários. Segundo Beired (1999), esta direita se fez nova na medida em que representou uma ruptura com o padrão tradicional da direita: ao invés de advogar em favor do liberalismo, combateuo fortemente, tendo o antiliberalismo como sua principal plataforma.

Isso se explica uma vez que seus membros identificavam os problemas nacionais como resultantes da incongruência das instituições liberais com a realidade nacional. Criticavam o utopismo das ideias iluministas, defendendo a substituição do liberalismo por uma autêntica ideologia nacional. Conforme Beired, “liberdade e igualdade eram tidas como abstrações a ser substituídas por outros valores políticos que privilegiassem a autoridade, a ordem, a hierarquia e a

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obediência” (BEIRED, 1999, p.19). Como resultado, atuaram de forma incisiva na formulação de alternativas à ordem liberaloligárquica.

É importante destacar que tal consenso de avaliação e objetivos, não significou a existência de um programa único por parte da direita. Suas propostas variaram de acordo com o diagnóstico da crise realizado por cada um de seus membros. De fato, é possível dividir essa direita em três pólos políticos intelectuais distintos, com base nos projetos que encabeçavam: um católico, um fascista e outro autoritário cientificista (BEIRED, 1999, p.14).

O primeiro polo, o católico, compreendia os intelectuais relacionados à revista católica A Ordem e ao Centro Dom Vital. Tinham como tema central a reespiritualização da sociedade face ao materialismo e individualismo vigentes, buscando a rearticulação das relações entre Igreja e Estado – demanda, em parte, realizada pela Carta de 1934. Já o segundo, o pólo fascista, foi aquele que mais se aproximou do fascismo italiano. Teve no movimento integralista sua maior e quase que única expressão. Por fim, o pólo científico englobava o conjunto de intelectuais que apelava à ciência para a legitimação de suas ideias. Caracterizavana, sobretudo a Sociologia, como veículo à compreensão objetiva da sociedade e conseqüente desenvolvimento do país, a partir da elaboração de um novo instrumental de ação do governo. Congregando intelectuais de renome como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos3, foi este último pólo o que maior obteve destaque no período (BEIRED, 1999).

Tal grupo exerceu grande influência junto à política nacional da década de 30, chegando mesmo a determinar seus rumos. Alguns de seus membros participaram ativamente da elaboração do projeto constitucional de 1933, da reforma política e econômica varguista e, até mesmo, da política educacional dos anos 30. Conforme Fausto, “os principais ideólogos da corrente tiveram papel significativo na criação de instituições e na vida política em geral”

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(FAUSTO, 2001, p.20). Intitulando o trabalho intelectual a serviço da “descoberta das leis naturais que regiam o social, de modo a explicar e conduzir o desenvolvimento humano” atuaram como verdadeiros intelectuais do governo (BEIRED, 1999, p.23). Não bastasse, foi também este o grupo cuja elaboração de ideias teve um caráter mais propriamente ideológico no período.

Segundo Lamounier, esse grupo do pensamento autoritário, o PAB4, foi responsável pela elaboração de uma nova ideologia de natureza políticoinstitucional: a ideologia do Estado Autoritário. Condensando a reação filosófica ao Iluminismo e ao utilitarismo, instrumentalizaram um novo modelo de administração política, centrado no fortalecimento do Executivo e legitimação da autoridade do Estado como princípio tutelar da sociedade (LAMOUNIER, 1979)5. Ao debater temas como crise, liberalismo, elitismo, nacionalismo, corporativismo e autoritarismo, esses autores procuraram deslegitimar o liberalismo e qualquer outro princípio a ele relacionando, apresentando, em seu lugar, o autoritarismo como um imperativo histórico ao povo brasileiro e, por isso, incontestavelmente legítimo - diante do caráter inorgânico da sociedade brasileira, faziase forçoso um Estado que a tutelasse; longe de representar uma ameaça às liberdades individuais, ele era, de fato, sua única garantia (VIANNA, 1939).

Ainda que aludissem à participação da sociedade a partir de sua organização em corporações, este corporativismo aparecia mais como um suporte teórico que amainava a construção do Estado autoritário no Brasil, do que como uma esfera real de representatividade – empregado em sua feição dirigista, caracterizava, antes, um dever social do indivíduo que seu direito (Rodrigues, 1990). Para o PAB, era a incapacidade em manter a ordem social, a ausência de

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um poder centralizado e a falta de caráter estrategista que tornavam o Estado ilegítimo; jamais sua autoridade. Por consolidar um Estado capaz de superar o quadro de crise vigente, romper com o liberalismo anômico e realizar o interesse nacional, a ideologia de Estado do PAB exprimia um verdadeiro idealismo orgânico (VIANNA, 1939).

Apelando à conveniência e adequação à realidade nacional, e à tendência da evolução política mundial de substituir a competência parlamentar pela técnica, propunha a fundação de uma nova ordem caracterizada pela: 1) preeminência do Estado sobre a sociedade civil; 2) preeminência do Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário; e 3) preeminência das elites técnicas sobre as elites políticas (SILVA, 2004). Em suma, a construção de um Estado autoritário que, apoiado em uma inteligência técnica e científica, organizada em corporações, tornarseia grande intérprete e real representante do povo. Segundo Vianna, o Estado autoritário corporativo exprimia “um verdadeiro regime de opinião, de um sistema de governo verdadeiramente popular, intérprete real dos interesses do povo e infinitamente muito mais democrático do que aquele que há cem anos, estamos procurando realizar” (VIANNA, 1974a, p.145).

É, pois, perceptível o alto grau de sistematização de ideias alcançado por esse grupo em detrimento dos demais. Não obstante tratarse de um período de amplo debate político e social, as demais correntes em disputa encontravamse fragilmente estruturadas chegando, mesmo, a desaparecer durante a luta política. Em face deste protagonismo ideológico do PAB, o presente artigo procura identificar qual foi a influência dessas ideias sobre os textos constitucionais de 1934 e 1937.

Nossa opção pelo estudo das Constituições explicase, primeiramente, pelo caráter legal imputado a...

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