Uma análise comparativa entre brasil e argentina acerca da realização do aborto

AutorLetícia Maria de Maia Resende
Páginas369-392
ABORTO LEGAL E SEGURO 369
UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE
BRASIL E ARGENTINA ACERCA
DA REALIZAÇÃO DO ABORTO1
Letícia Maria de Maia Resende2
INTRODUÇÃO
Falar de aborto é muito complexo, ainda mais dadas as controvérsias
no ambiente público. Isso porque a questão, permeada de tabus e pre-
conceitos, envolve perspectivas muito diversas que dizem respeito aos
direitos personalíssimos da mulher sobre o próprio corpo, a práticas
criminosas e a princípios religiosos que defendem a manutenção da
vida a qualquer custo. O tema tem sido alvo de debate há muito tempo
não só no Brasil, como mundo afora, a f‌im de se decidir se a interrup-
ção provocada da gravidez deve ser realmente criminalizada ou não.
Em razão da importância de se divulgar o assunto, de modo que as pes-
soas obtenham conhecimento crítico necessário para se posicionarem e
até mesmo mudarem de opinião, o presente artigo tem como objetivo a
análise da prática de aborto e da forma como o Brasil e a Argentina lidam
com ela, ambos países latino-americanos que, apesar das muitas seme-
lhanças, se posicionam diferentemente quanto à interrupção da gravidez.
1 Dada a não exigibilidade de ineditismo das contribuições que compõem a obra
coletiva, ressalva-se que o presente artigo fora publicado no livro “Estudos críticos
em Direito Penal e Processual Penal”, organizado por Rafael Alem Mello Ferreira et
al., no segundo semestre de 2021 pela Editora Dialética, sob o título “Interrupção
voluntária da gravidez: criminalização no Brasil e legalização na Argentina”.
2 Mestranda em “Constitucionalismo e Democracia”, com ênfase em “Relações So-
ciais e Democracia” pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Pós-gradua-
da em “Direito Público - Estado Democrático de Direito e Teoria da Constituição”
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS). Pós-graduanda
em “Direito da Diversidade e da Inclusão” pela Faculdade Legale. Graduada em
Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).
370 PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES
Nesse sentido, a partir da metodologia analítica e da técnica de pes-
quisa de revisão bibliográf‌ica, o trabalho se desenvolve em três se-
ções: a primeira delas trata da questão do aborto de maneira genérica,
apresentando seu conceito e abordando nuances que podem interferir
no modo como é compreendido; a segunda seção dedica-se a falar do
abortamento no contexto brasileiro, evidenciando os artigos 124 a 128
do Código Penal; por f‌im, a terceira seção cuida do cenário argentino,
onde, desde dezembro de 2020, restou aprovada a legalização da prá-
tica abortiva até a 14ª semana gestacional.
O presente artigo não tem a pretensão de esgotar o tema e todas
as circunstâncias por ele envolvidas. Assim, não será abordada, por
exemplo, a discussão doutrinária que se estrutura na busca do estabe-
lecimento de um marco inicial da vida intrauterina e das consecutivas
prerrogativas do feto, visto como então sujeito de direitos. Tampouco
se discorrerá amplamente acerca dos variados aspectos que obstacu-
lizam o acesso ao procedimento abortivo pelas mulheres brasileiras.
Intenciona-se, portanto, percorrer a noção geral do aborto e as legis-
lações brasileira e argentina, as quais adotam posições diversas ao se
fundamentarem em diferentes argumentos do multifário e inacabado
debate sobre a interrupção induzida do processo gestacional.
1. ABORTAMENTO: CRIME OU DIREITO DA MULHER?
A questão do abortamento, nome correto do procedimento que tem
como resultado o aborto, é considerada polêmica pelo fato de reunir
diferentes perspectivas e argumentos que, de um lado, defendem a vida
a todo custo e, assim, a criminalização da prática abortiva e, de outro,
garantem a autonomia da escolha da mulher, sendo mais favoráveis à
legalização do abortamento. Todavia, antes de prosseguir, é necessário
apresentar um conceito do tema em tela.
De maneira genérica, o abortamento (ou aborto) consiste na anormal inter-
rupção do processo de gravidez. Trata-se, pois, de evento em que ocorre a
morte do fruto da concepção (ovo, feto ou embrião) com ou sem sua ex-
pulsão do organismo materno. Pode esse anormal ou precoce desfecho da
gestação, com o necessário óbito do nascituro, vir, basicamente, determinado
por causas naturais (aborto espontâneo) ou, ainda, por condutas humanas
involuntárias (aborto acidental) e, por f‌im, por comportamentos voluntários
lícitos (aborto legal) ou ilícitos (aborto criminoso), sobre a última hipótese
concentrando-se o interesse maior do Direito Penal. (BALDAN, 2020).

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