Por uma sociologia do artista popular

AutorMariana Barreto
CargoMestre e doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Páginas169-194
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v17n39p169/
169169 – 194
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Por uma sociologia
do artista popular1
Mariana Barreto2
Resumo
Este artigo parte da premissa de que existe uma recorrência na forma como se estruturam as
carreiras dos artistas populares oriundos das classes populares. Na sociedade brasileira, marcada
pela força do mercado de bens simbólicos consolidado no seio do conservador processo de
modernização, as desigualdades sociais produzidas encontram correspondência na forma como
se desenvolveram as trajetórias profissionais e pessoais desses criadores. Modos de diferenciação
observados na constituição da música popular brasileira produziram efeitos específicos, tangíveis,
quando grupos de intelectuais vinculados à produção da cultura conquistaram certa hegemonia
nos reposicionamentos daquilo que seria ou não o popular, reconstituindo estruturas e proprieda-
des definidoras desse campo. Toma a carreira de João do Vale como objeto empírico preciso para
identificar os elementos que tendem a caracterizar as reproduções dessas desigualdades sociais
no universo simbólico da música popular brasileira. Um dos argumentos centrais é a defesa de
uma sociologia do artista popular que siga atentamente essa particularidade da modernidade e
que, ao mesmo tempo, reconheça nos trabalhos dos mais “autênticos” artistas populares a na-
tureza coletiva e socialmente territorializada de suas criações, isto é, que torne visível aquilo que
seus percursos e obras carregam do mundo social e de suas estruturas.
Palavras-chave: Metamorfoses do popular. Artista popular. Música popular brasileira. Hierar-
quias culturais.
1 Este trabalho deriva da Pesquisa “A trajetória de João do Vale como emblema das apropriações do termo
“popular” na música brasileira (1950–1980)”, financiada pelo Edital Universal MCTI/CNPq 01/2016.
2 É mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. É professora adjunta
III do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. mariana.barreto@pq.cnpq.br
Por uma sociologia do artista popular | Mariana Barreto
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Introdução
Diferenças e descompassos são marcas de qualquer domínio da vida
social. No âmbito da produção da cultura, de suas práticas e esquemas
de representação, tais variações se expressam em múltiplas dimensões, em
qualquer dos campos onde atuam criadores, produtores, mediadores e re-
ceptores, espaços e posições são hierarquizados. Quanto mais avançam seus
processos de autonomização, mais agentes e instituições operam esquemas
de classicação, articulam lógicas distintivas, realizando expressivas “trans-
gurações” das relações econômicas e de dominação.
Numa sociedade como a brasileira, marcada pela força de um mercado
de bens simbólicos que se consolidou no seio de um conservador processo
de modernização cultural, as desigualdades podem ser observadas mesmo
quando suavizadas pelos dados sensíveis das expressões artísticas ou por
um exível sistema de estraticação social.
Este artigo tem como premissa a existência de uma recorrência na for-
ma como as carreiras dos artistas populares se estruturam. Estas, quando
tomadas como objeto de estudo no âmbito das ciências sociais, tendem a
parecer homogêneas. No entanto, origens sociais, posses e conversões de
capitais (em diferentes estados: incorporados, objetivados, institucionali-
zados), crenças, interesses, apostas materiais e simbólicas, níveis de com-
preensão das formalizações impostas pelas necessidades do campo estão as-
simetricamente distribuídos. Se há alguma simetria, tende a espelhar-se nas
trajetórias prossionais ou nas tragédias pessoais desses artistas populares.
Os mais “autênticos” criadores, oriundos de diferentes segmentos so-
ciais, provieram, invariavelmente, das classes populares, nasceram em pe-
quenas cidades ou no campo e migraram cedo para as metrópoles, ainda
pouco escolarizados. Foram ou são autodidatas, cujas rotinas prossionais
foram ou são marcadas por intermitências e assentadas em valores pessoais,
como amizade, lealdade e gratidão. Seu prestígio e sua consagração são
construídos pelo reconhecimento do valor artístico de suas obras, ordina-
riamente atribuído a uma criação artística espontânea, efeito de disposi-
ções estéticas “puras”. Esse reconhecimento é aqui tensionado de modo a
evidenciar que a origem popular, embora pudesse ser tomada como garan-
tia, em si mesma, de “autenticidade”, demonstra uma forma de dominação

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