Uma sociologia em ato dos intelectuais: os combates de Karl Kraus
Autor | Michael Pollak |
Cargo | Pesquisador do CNRS e membro do Grupo de Sociologia Política e Moral e do Instituto de História do Tempo Presente |
Páginas | 22-62 |
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v17n39p22/
2222 – 62
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Uma sociologia em
ato dos intelectuais: os
combates de Karl Kraus1
Michael Pollak2
Resumo
A posição que Karl Kraus ocupou no campo intelectual austríaco é única na história dos intelectu-
ais. Em vez de tentar reconstruir seu pensamento como uma teoria, é possível interpretá-lo como
um revelador das regras do jogo que caracterizam o campo intelectual. Os escritos de Kraus sugerem
muito mais uma releitura no sentido de uma sociologia-ação, que lança mão de técnicas de provoca-
ção para tornar visíveis as sanções a que ficam expostos aqueles que atrapalham o jogo combinado
de dissimulação das relações entre intelectuais e poder. A análise das intervenções de Kraus pos-
sibilita vincular suas lutas a fenômenos de crise do campo intelectual. O papel desempenhado por
ele foi o de denunciar as implicações de um processo de racionalização das atividades intelectuais,
definido, inicialmente, pela substituição de um mercado intelectual pelo mecenato e, depois, pela
extensão e estruturação desse mercado em razão de demandas sociais cada vez mais precisas.
Palavras-chave: Karl Kraus. Intelectuais. Poder. Doxa. Guerra Mundial
O Artigo
Poucos escritores conseguiram polarizar tanto as opiniões sobre eles
quanto Karl Kraus. E não sem razão: foram poucos os que, como ele, con-
sagraram tantos escritos críticos a praticamente todos os integrantes do seu
círculo. À parte sua considerável obra poética e teatral, os textos satíricos
de Kraus são um testemunho bastante completo da vida dos intelectuais
1 Publicado originalmente em Actes de la Recherche en Sciences Sociales. vol. 36-37, La représentation
politique-1, p. 87–103, février/mars, 1981. Tradução de Letícia Borges Nedel.
2 Michael Pollak foi pesquisador do CNRS e membro do Grupo de Sociologia Política e Moral e do Instituto de
História do Tempo Presente. Publicou, entre outros: Vienne 1900 (1984), Les Homosexuels et le sida: sociologie
d’une épidémie (1988), L’Expérience concentrationnaire, Essai sur le maintien de l’identité sociale (1990).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 39 - Mai./Ago. de 2018
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austríacos de seu tempo. Mesmo os escritos poéticos e as peças de teatro
frequentemente trazem à cena casos típicos desse meio.
A posição ocupada por Karl Kraus no campo intelectual austríaco é úni-
ca na história dos intelectuais. Tendo redigido praticamente sozinho uma
revista de humor por quase 40 anos, suas tomadas de posição sobre os mais
diversos assuntos eram percebidas por seu público mais el como uma pa-
lavra de verdade acima de qualquer suspeita. E apesar do silêncio ocial dos
jornais da época em relação a eles, os artigos publicados na Die Fackel (A
Tocha) alimentavam o debate público. Pode-se dizer sem exagero que Kraus
foi, durante muitas décadas, uma instituição na vida intelectual vienense.
Por todo um período a Fackel dominou a vida intelectual vienense. Quem ela vai atacar
amanhã? Essa era a pergunta que permanentemente se fazia. A Fackel fazia parte da vida na
cidade. Gente que até então nunca tinha comprado uma folha impressa se informava lendo
a Fackel. Os jovens reservavam tempo para a Fackel como para suas idas ao cinema, como
se fossem ao teatro (SCHEU, 1909, p. 6–7).
Não surpreende que um personagem assim carismático, para não dizer
mítico, tenha gerado um dilúvio de comentários e interpretações. Já de
saída a literatura sobre Kraus se apresenta como tentativa de reconstruir
uma “doutrina” – seja literária, seja política. É como se a reexão sobre
um personagem de tamanha inuência no meio intelectual não pudes-
se passar sem a análise do seu “pensamento” ou da sua “teoria”. Assim,
para contradizer seu “elitismo cultural”, análises críticas interpretam sua
defesa da pureza linguística e literária como uma teoria que, sociologica-
mente falando, seria o resultado da situação privilegiada de rentista e da
consequente inaptidão para reconhecer a sobredeterminação da vida inte-
lectual de seu tempo pelo capital nanceiro emergente3. Outras análises,
debruçadas sobre o pensamento e as escolhas por vezes ambíguas de Kraus,
caracterizam sua doutrina política como sendo originária do humanismo
pacista e do liberalismo intelectual burguês, ambos incapazes de reconhe-
cer a necessidade de disciplina do intelectual em face de uma organização
política progressista4. Parece que os comentadores atuais, tal como faziam
3 Ver, sobretudo, a tese de BÄHR (1977). Desde a Primeira Guerra Mundial e a cada vez que Kraus entrava em
conflito aberto com intelectuais ligados às organizações de esquerda, esse argumento aparecia. Ver também
SCHICK (1995, p. 10).
4 Para uma análise da relação de Karl Kraus com a social-democracia, ver PFABIGAN (1976). Ver ainda o juízo
expresso por FISCHER (1969, p. 154 ss).
Uma sociologia em ato dos intelectuais: os combates de Karl Kraus | Michael Pollak
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os contemporâneos dele, sentem necessidade de justicar suas próprias es-
colhas e compromissos frente a uma instância outra, percebida acima de
tudo como instância moral. No entanto, reconstituir, como faz a maior
parte dos analistas, uma doutrina ou uma espécie de teoria geral a partir
dos artigos publicados na Fackel revela-se um empreendimento impossível
e fadado ao fracasso. Mesmo lá no único domínio onde Kraus fez uma
tentativa explícita de teorização, o domínio da língua, logo nos deparamos
com as diculdades decorrentes do caráter rudimentar e, nalmente, pou-
co sistemático desse corpus. O que sobra dessas reconstituições teóricas é a
constatação de retorno à pureza, a uma visão realista e um estilo despojado
que situam Karl Kraus ao lado de outros personagens que, na virada do sé-
culo, tentaram romper com as formas intelectuais e artísticas dominantes:
Adolf Loos, na arquitetura, Arnol Schonberg, na música; Oskar Kokosch-
ka, na pintura.
Em vez de tentar reconstruir o pensamento de Kraus como uma teoria,
podemos nos aproximar dele como um revelador das regras do jogo que
caracterizam o campo intelectual. Até porque, o uso de nomes próprios,
a polêmica pessoal, o tom geralmente moralizador, todos esses elementos
de estilo indicam não se tratar um intelectual teórico. Os escritos de Kraus
sugerem muito mais uma releitura no sentido da sociologia-ação, que ousa
romper com as regras de cortesia e lançar mão de técnicas de provocação
para tornar visíveis as sanções a que cam expostos aqueles que atrapalham
o jogo combinado de dissimulação das relações entre intelectuais e poder.
Por isso, a grande quantidade de processos movidos por ele e contra ele é
indissociável dos textos que produziu, no que lhe servem de meio de de-
monstração e vericação de seus argumentos.
De outra parte, fazendo reproduzir na Fackel tudo o que os contem-
porâneos vinham publicando a respeito de si e de suas obras na imprensa
estrangeira e austríaca, Kraus pretendeu desvelar as redes e relações de opo-
sição e coalisão que atravessam o meio literário e intelectual, e que estrutu-
ram os seus mecanismos de difusão. Vale lembrar, nesse ponto, do ostracis-
mo que se abateu sobre ele e de todos os pequenos atos de discriminação
que aos olhos dos admiradores eram um sinal da boa fundamentação das
suas lutas. A imprensa austríaca orquestrou contra Kraus uma campanha
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