A Universidade Vista 'A Certa Distância': a estrutura social da USP e sua representação simbólica

AutorMaria Caramez Carlotto
Páginas224-255
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n38p224/
224 224 – 255
A Universidade Vista “A Certa
Distância”: a estrutura social da
USP e sua representação simbólica
Maria Caramez Carlotto1
Resumo
O presente artigo inspira-se na sociologia do campo acadêmico de Pierre Bourdieu e na tradição
de análise estrutural da história da Universidade de São Paulo (USP) de autores para, a partir
da reconstrução da sua estrutura social, com a oposição entre o polo prof‌issional tradicional
e o polo acadêmico-científ‌ico, analisar sua representação simbólica solene por excelência, o
Brasão d’armas da USP. Para tanto, o artigo mobiliza os dados disponibilizados no Anuário
Estatístico da USP e no Questionário Socioeconômico da Fuvest, e realiza uma análise icono-
gráf‌ica do brasão da USP.
Palavras-chave: Universidade de São Paulo. História estrutural. Campo acadêmico. Formação
de elites.
Introdução
Uma das questões mais essenciais para uma sociologia do campo aca-
dêmico que se desenvolva na fronteira da sociologia política diz respeito
à forma pela qual os sistemas de ensino reproduzem e naturalizam hierar-
quia sociais que constituem o campo do poder, contribuindo para a con-
sagração social de elites dirigentes que, pela passagem pelo espaço escolar,
tornam-se legitimadas e socializadas para o exercício do poder. É essa a
inspiração geral que orienta a análise de Pierre Bourdieu sobre o sistema de
ensino superior francês. Nas suas palavras:
O campo universitário reproduz, na sua estrutura, o campo do poder que, através da sua
ação própria de seleção e inculcação, ajuda, por sua vez, a reproduzir estruturalmente.
É, na verdade, no e pelo funcionamento [do campo universitário] enquanto espaço de dife-
rença entre posições (e, ao mesmo tempo, entre as disposições de seus ocupantes) que se
1 Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail: maria.carlotto@ufabc.edu.br
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 38 - Jan./Abr. de 2018
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realiza, para além de toda intervenção das consciências e das vontades individuais ou cole-
tivas, a reprodução do espaço de posições diferenciais que são constitutivas do campo do
poder. Como mostra claramente a análise de correspondência, as diferenças que separam
as faculdades e as disciplinas, tal como é possível def‌ini-las através das propriedades dos
seus professores, apresentam uma estrutura homóloga àquela do campo do poder no seu
conjunto: as faculdades temporalmente dominadas, faculdades de ciências, e, em menor
grau, faculdades de letras, se opõem às faculdades socialmente dominantes, sob esse as-
pecto, praticamente idênticas, [como as] faculdades de direito e de medicina, por todo um
conjunto de diferenças econômicas, culturais e sociais, onde se reconhece o essencial do
que constitui a oposição, no seio do campo do poder, entre a fração dominante e a fração
dominada. (BOURDIEU, 1984, p. 62).
Essa proposição especíca sobre a existência de uma homologia en-
tre as estruturas universitárias e as estruturas de poder pressupõe, como
ca claro no excerto acima, uma operação analítica que busca reconstruir
a estrutura social do campo universitário, expressa nas hierarquias que
afastam e aproximam as suas diferentes unidades de ensino e pesquisa se-
gundo o padrão acadêmico e o perl socioeconômico dos seus membros.
É essa operação que Bourdieu (1984, 1989) realiza na análise do siste-
ma de ensino superior francês, inspirando todo um conjunto de traba-
lhos subsequentes sobre as hierarquias estruturantes do sistema de ensino
superior pensado a partir do conceito de campo (BOURDIEU; SAINT
MARTIN, 1987; DUBET, DURU-BELLAT; VÉRÉTOUT, 2012;
EURIAT; THÉLOT, 1995; GALL; SOULIÉ, 2007; GARCIA; POUPEAU,
2003; MERLE, 1996).
O presente artigo – que retoma algumas das análises desenvolvidas na
minha tese de doutorado intitulada Universitas semper reformanda? A histó-
ria da Universidade de São Paulo e o discurso da gestão à luz da estrutura so-
cial (CARLOTTO, 2014) – parte dessa inspiração geral para, por meio da
análise da estrutura social da Universidade de São Paulo (USP), descrever
a tradução de hierarquias sociais em hierarquias acadêmicas, bem como a
sua naturalização por meio de mecanismos diversos de simbolização, como
os que contribuem para denir o sentido da representação mais solene
da universidade: o seu Brasão d’armas, hoje convertido em seu símbolo
máximo. Para tanto, este texto se divide em três partes, para além desta in-
trodução. Na primeira intitulada Dominantes e dominados no contexto uni-
versitário: a estrutura social da USP, procuro reconstruir parte do esforço
A Universidade Vista “A Certa Distância”: a estrutura social da USP e sua representação simbólica | Maria Caramez Carlotto
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analítico que me permitiu, em trabalho anterior (CARLOTTO, 2014),
sistematizar a estrutura social da USP, construída empiricamente como
campo. Na segunda, chamada Hierarquias acadêmicas, hierarquias sociais:
o brasão da USP como representação simbólica da sua estrutura social procu-
ro mostrar como a análise das relações objetivas, expressão das estruturas
sociais que marcam a universidade, só se completa com a análise dos es-
quemas de percepção, de pensamento e de ação, produto dessas estruturas
sociais incorporadas enquanto estruturas cognitivas (BOURDIEU, 1989,
p. 7 ss), que concorrem para a naturalização e, portanto, perpetuação dessa
mesma estrutura. Na conclusão, procuro mostrar como o esforço essencial
deste artigo remonta a toda uma tradição especíca de reconstrução histó-
rica da USP, marcada pelo esforço de olhar a universidade “a certa distân-
cia”, objetivando a sua estrutura social, e que pode ser compreendido, ele
mesmo, estruturalmente.
Dominantes e dominados no contexto universitário: a
estrutura social da USP
Ao descrever o campo universitário francês, tanto em Homo
Academicus (1984) quanto em La noblesse d’état (1989), Pierre Bourdieu
reconhece a importância da contraposição entre um polo dominado, for-
mado pelas carreiras cientícas e certas formações prossionais como le-
tras, e um polo dominante, constituído pelas prossões socialmente valori-
zadas, como direito e medicina, como explicitado na citação que abre este
artigo. O autor reconhece, ainda, que essa oposição acadêmica traduz, nos
seus próprios termos, diferenças de ordem social, econômica e cultural que
também separam estruturalmente essas faculdades e, principalmente, seus
membros no espaço exterior à universidade, que Bourdieu denomina de
campo do poder.
Foi essa inspiração geral que me levou a desenhar uma pesquisa que
pensava empiricamente a USP – a mais tradicional universidade de pes-
quisa brasileira – como um campo, ou seja, como um espaço socialmente
hierarquizado, cuja estrutura de posições permite compreender as disputas
essenciais que marcam a universidade ao longo da sua história. Para recons-
truir essa estrutura social, mobilizei duas instâncias principais de produção
de dados estatísticos sobre a USP: o seu Anuário Estatístico, que sintetiza

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