Tributação sobre 'vendas diretas' pelo INSS

AutorPaulo de Barros Carvalho
CargoProfessor Emérito e Titular de Direito Tributário da PUC/SP e da USP
Páginas28-40

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1. Palavras introdutórias

Sabe-se que "venda direta" baseia-se na alienação de produtos e serviços no domicílio do consumidor ou em outros locais que não sejam pontos permanentes. Nessa espécie de negócio, as pessoas físicas, denominadas revendedoras, compram produtos diretamente do fornecedor e os reven-dem no sistema "porta-em-porta". Em regra, comerciantes autônomos adquirem os produtos da empresa revendendo-os por conta própria, auferindo lucro pela diferença dos preços de compra e revenda, arcando, inclusive, com todos os ônus inerentes ao negócio. Sua autonomia e liberdade são verificadas na não obrigatoriedade de cumprimento de horários, bem como

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na inexigência de dedicação exclusiva à revenda de uma única marca, podendo o revendedor atuar, simultaneamente, na comercialização dos produtos de diversas empresas de venda direta e, ainda, exercer qualquer outra atividade profissional.

Tratando-se de operação mercantil, o revendedor é contribuinte do ICMS, sendo o imposto calculado e recolhido pelos comerciantes autônomos, em regime de substituição tributária, nos exatos termos prescritos pelo Convênio ICMS n. 45/1999. A própria legislação previdenciária (Lei n. 6.586/1978) qualifica esses comerciantes independentes como segurados da previdência social na categoria de autônomo, contribuinte individual obrigatório.

A despeito das peculiaridades da "venda direta", o Ministério da Previdência Social apresentou propostas que visam à exigência de contribuição previdenciária incidente sobre as quantias recebidas dos revendedores, com determinação de que tais atos de comércio só possam ser praticados quando houver comprovação da regularidade previdenciária dos comerciantes autônomos.

Narrado o problema jurídico, a presente análise tem por objetivo conhecer, em termos epistemológicos, tais pretensões do Ministério da Previdência Social relativas à introdução no ordenamento jurídico dessa nova sistemática de tributação para as empresas de vendas diretas, manifestando-se sobre a sua constitucionalida-de ou não (i) na instituição de contribuição previdenciária para as empresas que praticam "venda direta", a qual seria calculada com base nos valores que recebem dos revendedores autônomos; e (ii) na criação de deveres instrumentais condicionadores do exercício desses atos de comércio. Para dar rendimento ao estudo, e no sentido de isolar os tópicos que outorgam substância ao assunto, apresento cinco indagações, que nos servirão de diretrizes para o estudo seguinte. Ei-las:

  1. Sabendo-se que a relação jurídica existente entre as empresas de "venda di-reta " é uma relação mercantil, de compra e venda de produtos, e que não se caracteriza o vínculo empregatício, pois não estão presentes os requisitos (pessoalidade, one-rosidade, subordinação jurídica e habitua-lidade) e que também não há qualquer prestação de serviços das revendedoras para as empresas de "venda direta ", pode o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) exigir contribuição previdenciária das empresas de "venda direta" em relação aos valores que recebem de seus clientes (revendedoras autônomas), considerando as estritas materialidades das contribuições previstas no art. 195, inciso I, alínea "a", da Constituição da República de 1988?

  2. Qual é o alcance do art. 194 da Constituição da República de 1988? O INSS pode se valer desse dispositivo constitucional para exigir das empresas de "venda direta" que retenham e recolham das suas clientes revendedoras a contribuição previdenciária?

  3. A Emenda Constitucional n. 47/2005 (Reforma Previdenciária) autoriza a pretensão do INSS? O custeio da seguridade social (saúde, previdência social e assistência social) não deve ser exclusivamente efetuado, no que toca à sociedade, com base na competência tributária do art. 195 da CR/1988? Os §§ 12 e 13 do art. 201 conflitam com o art. 203 da CR/1988? A pretendida "inclusão " não seria matéria da assistência social?

  4. A Lei n. 6.586/1978 foi recepcionada pela Constituição da República de 1988? Se recepcionada, seria ela adequada ou suficiente para suportar a tributação das revendedoras?

  5. Pode legislação ordinária ou complementar alterar dispositivos do Código Civil ou ainda do Código Comercial que regem a compra e venda de mercadorias no âmbito privado, de tal forma que somente permita que os atos de comércio sejam praticados mediante prova de regularidade fiscal/previdenciária? Caso possa, tal legislação seria constitucional? Caso

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seja possível, a legislação poderia ser específica para as empresas de venda direta ou deveria ser genérica e alcançar todos os atos de comércio?

2. As contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social na CR/1988

São três as espécies de contribuições na Constituição da República de 1988: (i) sociais, (ii) de intervenção no domínio econômico e (iii) de interesse das categorias profissionais ou econômicas (art. 149, caput), sendo a primeira subdividida em (i-a) sociais genéricas (art. 149, caput) ou (i-b) destinadas ao financiamento da seguridade social, isto é, saúde, previdência e assistência social (art. 195). Todas levam como semelhança o fato de serem instituídas pela Fazenda Pública Federal (União), sendo dissociadas uma das outras pela finalidade a que se destinam.

No tocante à subespécie das contribuições sociais especiais, voltadas para o financiamento exclusivo da saúde, previdência e assistência social, deve-se ter em conta que elas são disciplinadas de forma diferenciada pela Constituição, estabelecendo regime jurídico distinto das contribuições sociais genéricas. De fato, as contribuições para seguridade social receberam tratamento constitucional peculiar. Diferentemente das genéricas, em que a CR/1988 atribui ao legislador ordinário competência de livremente fixar os modelos das possíveis regras-matrizes de incidência tributária, as contribuições para seguridade social têm a materialidade da hipótese restringida pelos inúmeros requisitos que a Carta Maior descreve, estando o legislador infraconstitucional submetidos a tais prescrições. Para fins do presente estudo, destaca-se o requisito das fontes de financiamento direto da seguridade social autorizado pelo Texto Magno no art. 195,I a III, e § 8o, introduzido pela Emenda Constitucional n. 20/1998:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de for-ma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

  1. a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

  2. a receita ou o faturamento;

  3. o lucro;

II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;

III - sobre a receita de concursos de prognósticos.

(...).

§ 8o. O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei. Como imposição constitucional ao exercício da competência tributária da União, o preceito do art. 195,I a III, e § 8o vincula a atividade do legislador ordinário da União, que, por imposição deste requisito, não pode se distanciar dos termos cons-titucionalmente estabelecidos, quer no que diz respeito ao sujeito passivo, quer no tocante à hipótese de incidência ou à base de cálculo.

3. A regra-matriz de incidência tributária da contribuição para a seguridade social prevista no art 195, inciso I, alínea "a", da Carta Magna

Tomando como referência o art. 195, I, "a", do Texto Maior e preenchendo o ar-

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ranjo sintático da regra-matriz de incidência tributária com a linguagem do direito positivo, saturando as variáveis lógicas com o conteúdo semântico constitucional-mente previsto, identificamos a seguinte norma-padrão:

Hipótese:

• critério material: pagar ou creditar salários e demais rendimentos do trabalho a empregado ou prestador de serviço;

• critério espacial: território nacional;

• critério temporal: momento do pagamento ou creditamento do salário e demais rendimentos do trabalho.

Consequente:

• critério pessoal: ativo: União (INSS);1 passivo: empregador, empresa e entidade a ela equiparada na forma da lei;

• critério quantitativo: base de cálculo: valor da folha de salário e dos demais rendimentos pagos ou creditados à pessoa física que preste serviços, com ou sem...

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