Verdade material versus preclusão: traçando limites

AutorAlberto Macedo
CargoBacharel pela Faculdade de Direito da USP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/IBDT
Páginas145-157

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1. Introdução

Em âmbito de processo administrativo tributário, a doutrina se divide entre a possibilidade de apresentação de provas em qualquer tempo desse processo, à luz do chamado princípio da verdade material (em contraposição à verdade formal, reinante no processo judicial) e o respeito aos prazos preclusivos do processo administrativo previstos em lei.

A legislação do processo administrativo das três ordens jurídicas parciais que serão aqui abordadas (União, Estado de São Paulo e Município de São Paulo) prescreve exceções à preclusão do direito de instrução probatória, exceções essas justificadas pela existência de força maior, fato ou direito superveniente ou fatos posteriormente trazidos aos autos.

No entanto, no presente trabalho, pretendemos demonstrar que há possibilidade de apresentação extemporânea de provas não só nas hipóteses fundamentadoras de exceção à preclusão probatória supracitadas, mas em outras situações, desde que presentes outros critérios, conforme veremos a seguir.

A busca desses critérios para delimitar a flexibilização na busca da verdade jurídica é fundamental para que não se permita uma generalização na relativização dos prazos processuais, o que certamente contribuiria para a proliferação da má-fé no trato com o processo administrativo (de forma imediata) e com a coisa pública (de forma mediata), estimulando-se atitudes procrastinatórias.

Assim, o presente trabalho tem como finalidade contribuir para a fixação doutri-

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nária de limites entre a possibilidade de aplicação da flexibilização probatória do processo administrativo e os prazos de apresentação de provas previstos em lei, lembrando-se que esse labor é tomado numa análise dogmática do direito, considerando o direito posto vigente. Afinal, como bem observa Tarek Moussalem: "A norma jurídica é o caminho para a positi-vação do 'princípio'. Não seria exagero afirmar que a norma jurídica é mais importante que o princípio justamente por ser ela responsável pela aplicação dele. A relativi-zação da aplicação das normas jurídicas por meio dos 'princípios' (com a qual o referido autor não concorda) equivale a possibilidade de realizar todo e qualquer ato dentro do direito positivo".1

2. A verdade

Com o advento do Giro Linguístico, novos paradigmas no tocante à teoria da verdade foram traçados, abandonando-se a noção de verdade por correspondência, pela qual a linguagem servia apenas como meio para se descobrir o significado ontológico das coisas, conhecendo-as.

Partiu-se para a verdade por consenso, aliada à verdade por coerência, em que a coerência se dá entre as proposições de um determinado sistema quando elas não apresentam qualquer incongruência entre si; e em que o consenso decorre dessa coerência, na medida em que os utentes dessa linguagem se convencem da veracidade das proposições propostas.

Há que se registrar que não se pode conceber a busca de uma verdade sem precisarmos em que referência essa busca se dá. E essa referência se trata do sistema que adotamos para fazer essa busca, ou seja, da linguagem que esse sistema adota, por meio da qual, as verdades desse sistema serão construídas.

Por isso que a busca de uma verdade material, no sentido de se proceder à revelia dos modos e procedimentos legalmente previstos, apresenta-se como inadmissível no nosso ordenamento. Só há que se falar em busca de uma verdade jurídica,2 na medida em que produzida conforme os preceitos jurídicos que o ordenamento impõe, conforme a sua linguagem, linguagem jurídica. Exemplo da impossibilidade de estabelecimento de uma verdade não jurídica no sistema do direito é a própria vedação, no processo, às provas obtidas por meio ilícito (art. 5o, LVI, da Constituição de 1988), uma limitação à produção probatória.

Apesar do exposto, reconhecemos a força consensual que se apresenta com o rótulo "princípio da verdade material". Motivo pelo qual continuaremos utilizando essa denominação, mas não com uma acepção de livre dilação probatória a qualquer tempo, mas sim numa acepção mais restrita, no sentido de flexibilização do prazo para instrução probatória sob certas condições, como exporemos a seguir.

3. Processo administrativo "lato sensu", processo administrativo "stricto sensu" e processo admin istrativo físico

Em termos de tradição doutrinária, o vocábulo "processo" normalmente se aplica a casos em que está presente o contencioso, demandando, pois, um julgamento administrativo ao final. No Direito Tributário, nos casos de constituição de crédito tributário, só surgiria posteriormente a uma impugnação a lançamento tributário, por parte do contribuinte.

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O termo "procedimento" segue mais utilizado quando não há o referido contencioso, caracterizando-se, no Direito Tributário, na atividade preparatória para o ato de lançamento, em que se constitui o crédito tributário.

Odete Medauar está entre aqueles que identifica o critério conflituosidade como distintivo entre "processo" e "procedimento" ao ressaltar a utilização, por parte do constituinte, do signo "litigantes" no art. 5o, LV, da Constituição de 1988:3 Art. 5o. (...).

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (grifo nosso).

No mesmo sentido entende James Marins, para quem "pode-se (...) asserir, com absoluta segurança, que a partir da Constituição de 1988, é a configuração administrativa da litigiosidade entre a Administração Pública e o administrado que dispara o mecanismo de natureza processual" (grifo no original).4

A Constituição de 1988 conferiu ao processo administrativo o princípio da ju-risdicionalização, revelado a partir de três elementos: (i) garantia do duplo grau de jurisdição; (ii) princípio do contraditório, no qual se exerce a ampla defesa; e (iii) princípio do efeito vinculante das decisões finais proferidas para a Administração.5

A essas características Paulo Cesar Conrado acrescenta que quanto ao processo administrativo tributário: (i) o seu nascimento depende de provocação do sujeito passivo; e (ii) ele demanda a constituição prévia da obrigação tributária, com sua função repressiva.6

Contrapondo essas peculiaridades do processo administrativo, podemos afirmar que no procedimento administrativo tributário, entendido como aquele em que o Fisco desenvolve atividades preparatórias para a formalização do crédito tributário, não estão presentes, de uma forma plena, a ampla defesa e do contraditório. Nesse sentido, alude Alberto Xavier:7 "Dificilmente se concebe, na verdade, que o lançamento tributário deva ser precedido de uma necessária audiência prévia dos interessados. Duas razões desaconselham tal audiência: em primeiro lugar, o caráter estritamente vinculado do lançamento quanto ao seu conteúdo torna menos relevante a prévia ponderação de razões e interesses apresentados pelo particular do que nos atos discricionários; em segundo lugar, o fato de se tratar de um 'procedimento de massas', dirigido a um amplo universo de destinatários e baseado em processos tecnológicos informáticos, tornaria praticamente inviável o desempenho da função, se submetida ao rito da prévia audiência individual".

E não só os princípios da ampla defesa e do contraditório é que diferenciam procedimento de processo. James Marins ensina-nos que tais categorias são regidas por outros princípios distintos, e que no desenvolvimento do procedimento o Estado sequer formalizou alguma pretensão tributária perante o contribuinte.8

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Pelo exposto acima, parece-nos tranquilo inferirmos que a distinção entre procedimento e processo, no atual ordenamento, está posta em âmbito constitucional. Mas não há como negar, por conta da própria equivocidade inerente à linguagem, que se percebe na legislação no mínimo duas acepções para a expressão "processo administrativo". E essa equivocidade, que demanda distinção de nomenclatura conforme a definição de que se fala, não macula em nada a dicotomia processo-procedi-mento encontrada em sede constitucional.

A legislação de que falamos são as leis que regulam os procedimentos administrativos em geral das ordens parciais União, Estado de São Paulo e Município de São Paulo, respectivamente: Lei Federal n. 9.784, de 29.1.1999 (que "regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal"); Lei Estadual n. 10.177, de 30.12.1998 (que "regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Estadual"); e Lei Municipal n. 14.141, de 27.3.2006 (que "dispõe sobre o processo administrativo na administração pública municipal"). Primeiro indício que confirma nossa assertiva, como se pode notar, são as próprias ementas das três leis, que se referem a processo administrativo e não a procedimento administrativo.

Além disso, debruçando-nos sobre seu conteúdo, percebemos, na lei federal, que ela utiliza a expressão "processo administrativo" como gênero, conforme se des-sume do seu art. 5o, abrangendo, portanto, os processos que não são originários de uma discordância do administrado:

Art. 5o. O processo administrativo pode iniciar-se de ofício ou a pedido de interessado.

Percebemos também, ainda em âmbito federal, a acepção de "processo" como seu suporte físico:

Art. 22. (...).

§ 4o. O processo deverá ter suas páginas numeradas sequencialmente e rubricadas.

Na lei estadual, por sua vez, há um grande privilégio para o termo "procedimento", em que mesmo quando se...

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