Vinte anos depois: mulheres, (homo)sexualidades, classificações e diferenças na cidade de São Paulo

AutorRegina Facchini
Páginas195-223
Niterói, v. 9, n. 1, p. 195-223, 2. sem. 2008 195
VINTE ANOS DEPOIS: MULHERES,
(HOMO)SEXUALIDADES,
CLASSIFICAÇÕES E DIFERENÇAS
NA CIDADE DE SÃO PAULO
Regina Facchini
Universidade Estadual de Campinas
E-mail: rfacchini@uol.com.br
Resumo: Este art igo é fr uto de p esquisa
etnogr áfica realizada entre 2003 e 2008,
com mulheres que se relacionam afetiva e/
ou sexualmente com mul heres, na cida de
de São Paulo. Tem por foco o modo como a
diferença é produzida tanto na distribuição
destas mulhe res pe los lu gares do ci rcuito
de lazer n oturno em diferent es bairros da
cidade quanto nas categorias de classificação
mobilizadas para falar sobre a sexualidade.
A pesqu isa em campo foi con duzida de
modo a obter a mai or diversidade possível
em termos de classe, geração, “raça”/cor e
trajetórias e identidades afetivo-sexuais, por
meio de observação etnográfica no circuito
comercial de lazer paulistano frequentado por
estas mulheres e em espaços de sociabilidade
privados, complementada por entrevistas em
profund idade. O olh ar par a os resulta dos
revisita alguns dos primeiros olhares teóricos
das ciências sociais brasileiras para a temática
da homossexualidade, recuperando aspectos
que permitem uma aproximação entre al-
gumas destas abordagens e formulações da
teoria feminista contemporânea de inflexão
pós-estruturalista. A análise retoma os esfor-
ços da literatura antropológica brasileira dos
anos 1980 em desvendar a articulação entre
sexualidade e outras hierarquias sociais, en-
fatizando a interseção entre diversos eixos de
diferenciação social.
Palavras-chave: lésbicas; sociabilidade; sexu-
alidade.
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Vinte anos depois: mulheres, (homo)sexualidades,
classificações e diferenças na cidade de São Paulo
Na quarta-feira, fui ao Vermont Itaim, no projeto “Barracão de Zinco”. Trata-se de um pro-
jeto de samba da década de 1930 a 1950. A entrada custava 8 reais e começava às 20h00.
No flyer dizia: “O barracão é de zinco, mas é nosso”. Depois de passar por pelo menos dois
restaurantes chiques e caros, cheguei ao Vermont: o térreo de um prédio, o bar com paredes
de vidro escuro, um quiosque de entrada, onde estavam disponíveis fôlderes de divulgação
das atividades da Semana da Visibilidade Lésbica, promovida pela Prefeitura e parceiros –
entidades do movimento GLBT e empresas. [...] Do mezanino, pude enfim observar o espaço:
tudo de madeira, muito bem acabado, cardápio caprichado no conteúdo e apresentação, bar
nos dois pisos, decoração cuidada, com pequenos detalhes que faziam a diferença, como os
sofás que circundavam algumas das mesas e a iluminação agradável. O atendimento era ágil
e os garçons extremamente solícitos trajavam uma roupa típica de malandro, que ajudava a
compor a decoração produzida de modo a brincar com a ideia de botequim. Havia alguns
homens (um sentado sozinho, mais dois com amigas e outro com uma amiga também), todos
de roupa social. Pareciam ter saído do trabalho. [...] A maior parte do público era formado
por mulheres brancas na faixa dos 25 aos 35 anos, dividiam-se entre as que aparentavam
ter vindo do trabalho (calça social, sapato ou sandália de bico fino e blusinha) e as que
lembravam as estudantes da PUC: calça, cabelos lisos bem compridos (às vezes com faixas),
blusas bem femininas, acessórios caros e bem colocados e maquiagem leve. Depois percebi
que as pessoas por lá gostavam muito de marcas: notei, por exemplo, cuecas e óculos Dolce
e Gabbana e um chamativo terninho da Cavalera.
(diário de campo, agosto de 2007)
A descrição acima é trecho de diário de campo sobre uma das mais elitizadas
noites do circuito comercial paulistano voltado para mulheres que gostam de outras
mulheres. Em O negócio do mic, ao dialogar com os escritos de Martin Levine (1979)
sobre a pertinência da aplicação da ideia de gay ghetto ao contexto que estudava,
Néstor Perlongher (1987, p. 56-57) apontava o início da expansão de uma certa
“visibilidade homossexual”, antes restrita às “bocas”, para “bairros de classe média”.
Embora falasse majoritariamente de garotos de periferia que, nas noites do
centro da cidade, se engajavam, entre a deriva e o cálculo, em relações heterogâmicas
com homens mais velhos, mais brancos e mais ricos, Perlongher não deixou de captar
um processo de mudança. De um lado, temos a vivência mais pública da homosse-
xualidade praticamente restrita à “região moral”; a “Operação Limpeza” que, sob o
comando do delegado Richetti,1 visava “limpar as bocas” e reconfigurou o “gueto”
homossexual na região central; a predominância da performance ostensivamente viril
e da negação de qualquer indicativo de homossexualidade entre os michês. De outro,
a presença de ativistas homossexuais nas reuniões do primeiro grupo ativista paulis-
tano – o Somos –, nas manifestações públicas e nos bares mais badalados do centro;
a presença dos primeiros “michês gays” na “área da Marquês de Itu” – indicados
1 Nome que se tornou conhecido nos relatos de antropólogos que estudaram movimentos feminista e homossexual no
início dos anos 1980, sobretudo pelo fato de suas investidas sobre o “gueto” terem sido o mote da organização da
primeira manifestação pública que levou às ruas ativistas homossexuais, feministas, prostitutas, travestis e apoiadores,
em 13 de junho de 1980.

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