Viver no feminino: escrita epistolar de Liddy Chiaffarelli Mignone para Mário de Andrade

AutorInês de Almeida Rocha
Páginas143-164
Niterói, v. 11, n. 1, p. 143-164, 2. sem. 2010 143
VIVER NO FEMININO: ESCRITA EPISTOLAR
DE LIDDY CHIAFFARELLI MIGNONE
PARA MÁRIO DE ANDRADE
Inês de Almeida Rocha
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail: ines.rocha@oi.com.br
Resumo: O texto analisa aspectos da escrita
epistolar de Liddy Chiaffarelli Mignone para
Mário de An drade, na intenção de revelar
form as do vive r n o f emin ino desta que ,
além de cantora, desenvolveu significativos
trabalhos em Educação Musical e formação
de professores de música no período entre
as décadas de 1930 e 1960. Em sua escrita
par a o am igo, há evi dênci as de forma s
parti culares de viver de uma mulher que
buscava sua realização intelectual, profissional,
afetiva, enfim, sua felicidade. Nesta prática
de escrit ura, revelam- se fa cetas de Liddy
Chiaffarelli Mignone como filha, mãe, esposa,
cantora, professora, escritora e amiga.
Pal av ra s- ch av e: esc rita e pist olar, Li ddy
Chiaffarelli Mignone e Mário de Andrade.
144 Niterói, v. 11, n. 1, p. 143-164, 2. sem. 2010
Introdução
“Mário amigo. —
Antes de mais nada devo contar a você qual a causa da demora da minha resposta à sua
primeira carta: o Mignone andou cansado e ‘nervosinho’, com desejo de solidão completa e
com grande misantropia e, naturalmente, com isto me afligi moralmente. Fisicamente andei
[ilegível] de cansaço pois faz 3 semanas que a minha empregada está doente e durante uma
semana inteirinha tive que aguentar sozinha com todos os serviços caseiros, que eu fazia
de cara amarrada e debaixo de protestos, mas que remédio? Agora tenho uma mulatinha
simpática me ajudando e só me ficou a obrigação da ‘arte culinária’ na qual o Chico me
ajuda e nos divertimos os dois a inventar coisas!! Felizmente o Chico já está mais descansado
e alegrinho! Até já tivemos uma reunião do desfalcado 6teto., e como desfalcado! O Chico
‘criou’ uns raviólis ‘que estavam divinos’. Oh, que pena você não ter podido experimentar!
[...] “Liddy Chiaffarelli Mignone, 1941a.1
O cotidiano de uma dona de casa, uma mulher com seus afazeres domésticos,
desempenhando funções femininas caseiras que a sociedade da época esperava,
contrasta com a profissional ativa, que exercia diferentes atividades no campo da
educação musical e com a mulher que sabe decidir o rumo de sua própria vida. Liddy
envia cartas para o amigo, escritor modernista brasileiro Mário de Andrade, contando
detalhes de seu dia a dia, da lida doméstica, de seus sentimentos, das preocupações
com seu companheiro, o compositor Francisco Mignone,2 e de acontecimentos que
envolviam os amigos em comum.
Neste texto, analiso alguns aspectos da escrita epistolar de Liddy Chiaffarelli
Mignone para Mário de Andrade na intenção de revelar formas de viver no feminino
de uma mulher que buscava sua realização intelectual, profissional, afetiva, enfim, sua
felicidade. Esta escrita demonstra facetas de Liddy Chiaffarelli Mignone como filha,
1 Neste texto, optei por uma transcrição atualizada das cartas, mantendo algumas marcas de escrita,
como os traços para a mudança de assunto, a abreviatura 6teto. para a palavra sexteto, uso de aspas
e palavras sublinhadas. A ortografia e acentuação foram atualizadas, visando tornar a leitura mais ágil
e facilitar a compreensão do conteúdo do texto. Adotei tais procedimentos, por considerar que não
comprometeriam, na presente análise, as reflexões que ora me proponho a realizar. Em minha tese de
doutorado, em fase de redação, pretendo incorporar discussões teóricas feitas no campo da Linguística
e da História da Cultura Escrita, para a transcrição de cartas, especialmente as contribuições e análises
de Antonio Castillo Gómez, Verónica Sierra Blas, Laura Martínez Martín, Jordi Curbet, Rita Marquilhas
e outros autores que discutem estas questões, debatidas em Congressos como: IV Xuntanza da Rede
de Arquivos e Escrita Popular: Memoria Escrita, Historia e Emigración (6 a 8 de novembro de 2008,
Santiago de Compostela) e The Fifth International Conference of the European Society for Textual
Scholarship: Personal Writings and Textual Scholarship (20 a 22 de novembro de 2008).
2 O casamento de Liddy Chiaffarelli e Francisco Mignone só foi oficializado em 1 de fevereiro de 1947
(SILVA, 2007), sendo, portanto, posterior ao período da correspondência que analiso. Entretanto,
neste texto, utilizarei a denominação companheiro(a) para caracterizar a união dos dois, já que nesta
correspondência, ela não se refere a Mignone chamando-o de marido ou esposo. Todavia, na carta
escrita em 21 de maio de 1940, ela faz a única referência a uma denominação do relacionamento
deles, chamando-o de companheiro de vida, por isso optei por utilizar este termo.

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