Vulnerabilidade digital e responsabilidade
Autor | Nelson Rosenvald e José Luiz de Moura Faleiros Júnior |
Páginas | 621-643 |
VULNERABILIDADE DIGITAL
E RESPONSABILIDADE
Nelson Rosenvald
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Sumário: 1. Introdução – 2. Liability: a renovação pela multifuncionalidade da responsabilidade
civil – 3. Responsibility: o sentido moral da responsabilidade – 4. Accountability: vetor da atuação dos
agentes de tratamento de dados pessoais – 5. A vulnerabilidade digital entre liability e accountability –
6. Answerability (ou explainability) – 7. A função promocional da responsabilidade civil como ponto de
chegada – 8. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o nosso Código Civil. Produto de um
empreendimento conduzido por Miguel Reale na década de 1970 – com pontuais
alterações até a sua vigência –, o monumento brasileiro ao “cidadão comum” partia
de uma ambição antropocêntrica, qual seja, situar o ser humano no ápice do estatuto
privado, enaltecendo a sua dignidade e funcionalizando as situações patrimoniais
às existenciais, consolidando normativamente as premissas teóricas do direito civil-
-constitucional.
O personalismo ético inuenciou decisivamente a ltragem dos dispositivos do
Código Civil de 2002 e microssistemas, submetendo toda atividade econômica aos in-
uxos igualitários e solidaristas de um Estado Democrático de Direito, profundamente
comprometido com a transformação de uma sociedade deveras excludente, incapaz de
resgatar as promessas iluministas da modernidade.
Na qualidade de fonte do direito das obrigações, a responsabilidade civil foi inserida
no Código Reale como locus preferencial das disfuncionalidades na atividade econômica
e nas relações humanas. A função reparatória exala a losoa moderna adepta da pri-
mazia da liberdade. O sistema de direito privado não interfere previamente no exercício
de atos e atividades, permitindo que o mercado se autorregule, de forma a preservar a
autonomia privada. A interferência do ordenamento se dá a posteriori, no momento
patológico do dano, com a xação de uma indenização apta a corrigir o desequilíbrio
econômico subsequente à lesão.
Com efeito, o art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual “aquele
que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, ca obrigado a repará-lo”. O
dispositivo sanciona um ilícito por seu valor causal, segundo o qual a liberdade de ação é
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soberana até o limite do neminem laedere. Portanto, não sanciona a conduta, porém um
efeito dela, consistente em impor concretamente um dano a outra pessoa, naquilo que
é notoriamente conhecido como responsabilidade civil, extracontratual ou aquiliana.
A sanção entrará em cena para reagir ao evento e não à conduta em si, ou seja, o que se
quer é enfrentar os efeitos decorrentes do ato, através de sua eliminação por força da
compensação dos danos. Neutralizam-se os efeitos da violação com a restauração da
ecácia do preceito primário.1
Vivenciamos um big bang de interesses merecedores de tutela, com uma fartura
de novas etiquetas, sendo a maior parte objeto de importação jurídica, sem a necessária
reexão sobre a adequação do transplante ao ordenamento jurídico brasileiro. Infeliz-
mente, como coloca Shoshana Zubo,2 o intitulado “capitalismo de vigilância” erode as
bases antropocêntricas do direito civil, reivindicando de maneira unilateral a experiência
humana em matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais que
são disponibilizados no mercado como produtos de predição que antecipam e modelam
comportamentos futuros. A visão kantiana do ser humano como m em si é desvirtuada
por um instrumentarismo, cuja base é a expropriação de nossa personalidade em prol
de nalidades alheias.
A realidade digital converte situações existenciais em uma nova propriedade ba-
seada na despossessão da essência daquilo que nos dene, através de uma modicação
comportamental cujo legado de danos pode custar a nossa própria humanidade. Surge
uma nova estirpe de vulnerabilidade (agora dita “digital”) e novas situações jurídicas
desiguais, que passam a demandar tutela especíca.3
1. Lateralmente à reparação pelo equivalente pecuniário, resultado análogo em termos de sanção, alcançamos
com provimentos reintegratórios a base da tutela especíca, assim, pelo referido art. 947, “se o devedor não
puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente”. O mesmo
desiderato é visado quando há o provimento restituitório no enriquecimento sem causa: “aquele que, sem justa
causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização
dos valores monetários” (art. 884, CC).
2. ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder.
Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021, p. 19-23. A autora encarta seis declarações
que resumem o capitalismo de vigilância: “Nós reivindicamos a experiência humana com o matéria-prima
gratuita para se pegar. Com base nessa reivindicação, podemos ignorar considerações de direitos, interesses,
consciência ou entendimento dos indivíduos; com base na nossa reivindicação armamos o direito de pegar a
experiência do indivíduo para convertê-la em dados comportamentais; nosso direito de pegar, baseado na nossa
reivindicação de matéria-prima gratuita, nos confere o direito de possuir os dados comportamentais derivados
da experiência humana; nossos direitos de pegar e possuir nos conferem o direito de saber o que o conteúdo dos
dados revela; nossos direitos de pegar, possuir e saber nos conferem o direito de decidir como usamos o nosso
conhecimento; nosso direitos de pegar, possuir, saber e de cidir nos conferem nossos direitos às condições que
preservam nossos direitos de pegar, possuir, saber e decidir” (Op. cit., p. 210).
3. Sobre o tema, analisa Virginia Eubanks: “e relationship between inequality and information technology
(IT) is far more complex than any picture portraying “haves” and “have-nots” can represent. Working toward
an information age that protects human rights and acknowledges human dignity is far more dicult than
strategies centered on access and technology distribution allow. One piece of the high-tech equity puzzle that
is generally overlooked when we try to imagine “technology for people” is the relationship among technology,
citizenship, and social justice. is is unfortunate, as our notions of governance, identity, and political demand
making are deeply inuenced by IT in a wide variety of institutions, including social service agencies, training
programs, schools and colleges, government institutions, community organizations, the workplace, and the
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