30 Anos de atuação do stf em matéria eleitoral: aplicação de princípios e tutela da democracia

AutorHumberto José de Rezende Rocha
CargoUniversidade de São Paulo - USP
Páginas208-240
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30 ANOS DE ATUAÇÃO DO STF EM MATÉRIA
ELEITORAL: APLICAÇÃO DE PRINCÍPIOS E
TUTELA DA DEMOCRACIA
BRAZILIAN SUPREME COURT 30-YEAR PERFORMANCE
ON ELECTION LAW: LEGAL PRINCIPLES AND JUDICIAL
CUSTODY OF DEMOCRACY
Humberto José de Rezende Rocha1
Data de Submissão: 28/03/2022
Data de Aceite: 28/06/2022
Resumo: Trata-se de pesquisa destinada a descrever a atuação do Supremo
Tribunal Federal (STF) em matéria eleitoral. Para tanto, o trabalho tem como
objeto as decisões nais de mérito proferidas pelo STF sobre normas de Direi-
to Eleitoral com abrangência nacional, em sede de controle abstrato de cons-
titucionalidade, na vigência da ordem constitucional de 1988. A análise desse
corpus empírico focaliza as decisões em que o Tribunal contrariou as instâncias
representativas e tem como objetivo descrever a aplicação de princípios pelo
STF e identicar tendências jurisprudenciais. Ao nal, foi possível formar o
que se denomina “mosaico” ou “constelação de casos” sobre o tema.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. princípios constitucionais. Direito
Eleitoral. instâncias representativas. tutela judicial da democracia.
Abstract: The research aims to describe the Brazilian Supreme Court perfor-
mance on Election Law. For this purpose, it analyzes all the decisions related
to national Election Law, rendered by the Court in abstract judicial review pro-
ceedings, under the Brazilian Constitution of 1988. The analysis is focused on
the decisions in which the Court opposed the representative institutions, and it
intends to describe the use of legal principles and to identify judicial trends. At
the end, it was possible to compose what is called a “mosaic” about the subject.
Keywords: Brazilian Supreme Court. legal principles. Election Law. represen-
tative institutions. judicial custody of democracy.
1 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP
(2019), membro do Ciclo de Debates: Direito e Gestão Pública, promovido pela FGV
Direito SP (2021) e advogado em São Paulo/SP. Endereço eletrônico: humberto.jose.ro-
cha@alumni.usp.br.
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1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
O poder popular é exercido na sociedade contemporânea por meio da repre-
sentação política2, o que requer a operação de um “mecanismo apto a receber e a
transmitir a vontade do indivíduo”, ou seja, de um sistema eleitoral3. Esse sistema,
desde que hígido e ecaz, pode contribuir signicativamente para o exercício ade-
quado do poder político e, assim, para a concretização do propósito democrático e
liberal de “alargar e defender a esfera autônoma de cada um”4.
O sistema eleitoral em vigor no Brasil está previsto, em parte, na Constitui-
ção de 1988 e, em parte, na legislação infraconstitucional, tendo sido objeto tam-
bém de conformação judicial, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
no exercício do controle de constitucionalidade.
Recentemente, a atuação expansiva do Poder Judiciário tem sido amplamen-
te criticada por setores da imprensa e do meio acadêmico. Especicamente em
relação ao Direito Eleitoral, sustenta-se que os Tribunais têm invadido a esfera de
competência do Poder Legislativo e violado as garantias previstas na Constituição
ao decidir casos com um propósito moralizador, em detrimento da soberania popu-
lar e de outros pilares do regime democrático5. Como consequência,
O sistema eleitoral deixa de ser visto como acessório, como instrumen-
to da transformação da soberania popular, por meio de eleições, em
mandatos e cargos, para ter um m em si mesmo: o objetivo de qua-
licar a democracia e a Administração Pública pela tutela do povo na
escolha de seus representantes.6
Ainda segundo a crítica, as sucessivas intervenções judiciais, obsessivamente
guiadas por princípios constitucionais, teriam como resultado desastroso a confor-
mação indevida, pela via judicial, de um sistema eleitoral decitário, “com menos
2 No artigo 1º da Constituição de 1988, parágrafo único, lê-se: “Todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constitui-
ção”.
3 A denição é de Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Cf. Curso de Direito Constitucional, 34ª
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 105.
4 O propósito foi assim enunciado por Ferreira Filho. Idem, p. 102.
5 FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino; MEZZAROBA, Orides. A Lei da Ficha Limpa – O
Cavalo de Troia do protagonismo do Poder Judiciário. In: Revista dos Tribunais. Vol. 974/2016,
p. 111 - 128.
6 Idem, p. 119.
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candidatos, menos recursos para as campanhas, limitados recursos de propaganda,
reduzido tempo de campanha”7.
O cenário é evidentemente grave, em duas perspectivas: no que diz respeito
ao exercício da jurisdição constitucional, pairam acusações sobre o STF por suposta
atuação em desconformidade com os limites que lhe são impostos pela hermenêu-
tica constitucional, a ciência que fornece regras para a atividade interpretativa da
Constituição8; já em relação ao Direito Eleitoral, vige um sistema frágil, que sofre
alterações profundas a todo tempo, em permanente crise de representatividade,
desprovido de credibilidade junto aos eleitores e, segundo a crítica doutrinária, ex-
pressivamente conformado de forma indevida pela via judicial.
Apesar da evidente relevância das questões expostas até aqui, uma pesquisa
bibliográca9 revelou que poucos trabalhos jurídicos10 se dedicam à análise conco-
mitante e abrangente de ambos os temas, quais sejam, hermenêutica constitucional
e Direito Eleitoral. vasta bibliograa sobre a interpretação constitucional rea-
lizada pelo STF, especialmente na perspectiva do chamado ativismo judicial, bem
como inúmeros trabalhos sobre o sistema eleitoral brasileiro, mas a quantidade de
trabalhos sobre a atuação do Tribunal em matéria eleitoral é reduzida11. Ainda, a
maior parte deles consiste em estudos de casos sobre julgamentos especícos ou
em compilados de casos paradigmáticos. Embora úteis, tais perspectivas são limita-
das e podem, inclusive, direcionar pesquisas cientícas a conclusões pouco precisas
(ou até mesmo equivocadas) sobre a atuação do STF12.
Por essas razões, optou-se por realizar uma análise abrangente do compor-
tamento do Tribunal, concomitantemente sob as lentes da hermenêutica constitu-
cional e do Direito Eleitoral, focalizando as decisões em que o Tribunal contrariou
as instâncias representativas. A pretensão é averiguar aspectos da crítica doutrinária
7 Idem, p. 117.
8 A denição é de Celso Ribeiro Bastos. Cf. Hermenêutica e interpretação constitucional.
ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 23-29.
9 Sobre o controle cruzado de bibliograa, cf. MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita. Guia de
metodologia jurídica: teses, monograas e artigos. Roma: Edizioni del Grifo, 2001.
10 No campo da Ciência Política há muitos trabalhos dedicados à investigação da “reforma
política realizada pelo Poder Judiciário”, mas que não abrangem a perspectiva da hermenêutica
constitucional, que dene a linha da presente pesquisa.
11 Exceção é a quantidade signicativa de pesquisas sobre a interação entre o STF e o Tribunal
Superior Eleitoral, que, devido às suas particularidades, foi excluída deste trabalho, pelas razões
expostas a seguir.
12 Cf. a advertência de EPSTEIN, Lee; KING, Lary. Pesquisa empírica em direito: as regras
de inferência (e-book). São Paulo: Direito GV, 2013, p. 14.

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