Reflexões sobre a Expropriação de Terras Destinadas à Exploração do Trabalho Escravo

AutorFrancielly Schmeiske - Gabriela Araldi Walter
CargoAdvogada. Procuradora do Município de Ribeirão Claro/PR - Pós-graduanda em Direito Público (Escola Superior da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul)
Páginas20-27

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1. Linhas introdutórias

Diversos são os conceitos que uma mesma sociedade atribui a seus institutos. Notável caso é o da propriedade: para alguns, símbolo de riqueza e poder, de grandes extensões de terra. Para outros, pequenas porciúnculas adquiridas à custa de longos anos de trabalho. Ainda para muitos, apenas um sonho distante.

Herdeiros de uma cultura que enaltece a propriedade privada, o coronelismo e o caráter quase sagrado da propriedade de terras, há quem veja com estranheza a introdução de uma emenda ao texto da bíblia política de 1988, a qual traz em seu bojo o poder-dever de ex-propriação das terras em que se dá a exploração de trabalho escravo, destinando-as à reforma agrária, sem indenização ao proprietário.

Ante a inovação constitucional, propomo-nos a estudar as origens da propriedade privada no Brasil, suas transformações através dos cinco séculos desde seu "descobrimento", analisando os limites do conceito de propriedade, a função social que esta deve cumprir, o trabalho nela exercido, minudenciando questões como a dignidade da pessoa humana e a escravidão dos tempos modernos, as questões agrárias e as sanções.

2. Propriedade privada no Brasil
2.1. Panorama histórico

Ao longo de cinco séculos, colossal extensão de terra banhada pelo Oceano Atlântico assumiu diversas nomenclaturas: Terra de Vera-Cruz, Império do Brasil, Estados Unidos do Brasil, e por im, República Federativa do Brasil.

Iniciamos o presente estudo com uma breve investigação dos fatores que nos levaram a conhecer

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a propriedade nos moldes em que hoje a temos, condição de direito e garantia constitucional, que deve atender a uma função social.

Propõe-se a análise do viés histórico, uma vez que tal perspectiva não somente é mecanismo hermenêutico, mas se reveste de vital importância para a compreensão dos elementos que culminaram no Estado constitucional atual, cujo núcleo reside na airmação e na proteção da dignidade da pessoa humana e demais direitos e garantias fundamentais.

O descobrimento, em divergência com o que se aprende em tenra idade nos bancos escolares, não se deu pelo incauto navegador português Pedro Álvares Cabral em sua rota para as Índias, posto que os espanhóis já haviam aqui estado antes do histórico 22 de abril de 1500, sem poder, contudo, clamar juridicamente para si o território, por força de determinações da coroa portuguesa1, bulas papais2 e o Tratado de Tordesilhas3.

Comum à época renascentista medieval das navegações era a concepção de que o domínio territorial era dádiva divina, cuja repre-sentação na Terra se dava pela i-gura do Papa, chefe da cristandade. Tamanha era a autoridade apostóli-ca, que detinha o poder de atribuir a propriedade de terras que ainda sequer haviam sido descobertas a seus iéis.

Estabelecido o domínio português sobre as terras do novo mun-do, fazia-se mister a ocupação das terras, e o meio encontrado pelo colonizador europeu foi escravizar os habitantes primitivos das praias que lhes havia legado a autoridade papal, subjugando os indígenas e impondo-lhes, pela força, o traba-lho em suas roças e canaviais.

Sendo tão grande a extensão de terras "além-mar", havia a necessidade de povoá-las, e a maneira encontrada pelo governo português foi a instituição de sesmarias, distribuindo gratuitamente terras a quem as quisesse tomar, condicionada a doação somente à obrigação de cultivo e moradia.

Frente à imposição de tais con-dições, sob pena de conisco da sesmaria para que fosse doada a outrem caso não cumpridos os ter-mos estipulados, observa-se que na alvorada da história brasileira a propriedade da terra trazia consigo o embrião da função social positivada em 1988, sendo ponto fundamental da concessão de terras o benefício coletivo advindo da ocupação e povoamento da terra, bem como do cultivo agrário.

Tragicamente, subterfúgios fo-ram rapidamente criados a im de driblar o atendimento das determinações legais4. Relatos datados de 18225, 18716, 18807 dão conta da existência de inúmeros latifúndios, da pobreza e da exclusão social gerada pela concentração de glebas e demonstram o caráter histórico da corrupção, da enraizada cultura de opressão e subjugo do hipossui-ciente.

Esta perfunctória análise histórica demonstra que a margina-lização dos necessitados foi uma constante ao longo da história bra-sileira. As determinações legais restavam lagrantemente descum-pridas, e as terras, tão abundantes, que deviam frutiicar e alimentar a todos, acabavam por ser instrumento de opressão e subjugo dos mais necessitados.

Restou, também, demonstrado que "em qualquer tempo, possuir terras está atrelado à ideia de poder econômico, social e político, ainda que tais terras nada produzam, servindo em grande parte como instrumento de exploração do ser humano"8. Em razão disso, veio a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituir na condição imutável de cláusula pétrea a função social da proprie-dade, tema que passamos a estudar a seguir.

2.2. Função social e intervenção estatal na propriedade privada

Conforme se estudou linhas acima, a função social da propriedade não é ideia tão moderna quanto se pensava, sendo, contudo, imposta em caráter constitucional somente na parte derradeira do século XX.

A expressão função social da propriedade apareceu pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 157, inciso III, da Constituição Federal de 1967.

Antes disso, na carta de 1946 se falava apenas em bem-estar social, determinando, o artigo 147, que "o uso da propriedade será condicio-nado ao bem-estar social. A lei po-derá, com observância do disposto no artigo 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos".

A partir de 1988, a Constituição Federal, em seu título destinado aos direitos e garantias fundamen-tais, especiicamente no artigo 5º, inciso XXII, garantiu o direito de propriedade.

Em que pese isto, e com fundamento na premissa de que não há direito absoluto no ordenamento jurídico pátrio, a própria lei funda-mental, no artigo 5º, inciso XXIII, condiciona o uso da propriedade privada, devendo, esta, atender a sua função social. Sendo assim, é possível concluir que o direito à propriedade é um direito relativo e condicionado.

Para conirmar este dever imposto ao proprietário, o Código Ci-vil estabelece, em seu artigo 1.228, § 1º, que:

"O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas inalidades econômicas e sociais e de

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modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a lora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas."

Resta evidente, diante desse panorama, que a ordem jurídica brasileira determina a utilização adequada do bem, que não deve servir apenas para os interesses do proprietário. Desse modo, constatado o não atendimento da função social da propriedade, o Estado deverá atuar para que se faça cumprir a determinação constitucional.

A intervenção estatal na pro-priedade privada se justiica, por-tanto, na premissa de que o Estado deve fazer prevalecer os interesses coletivos sobre os interesses individuais. Com este fundamento, o ente estatal poderá intervir na propriedade particular para restringir a utilização do bem, visando defender o interesse público, seja por intermédio de servidão administrativa, requisição, ocupação temporária, limitação administrativa, tombamento ou desapropriação.

Além dessas, há outras formas de intervenção dos municípios na propriedade privada, reguladas na Lei 10.257/01, conhecida como Estatuto da Cidade.

Os institutos acima elencados concedem ao Estado tanto o poder de interferir na propriedade para restringir e condicionar a atuação do particular sem retirar o bem do indivíduo, sendo denominado de intervenção restritiva, como o poder de promover a transferência da propriedade para si, chamada também de intervenção supressiva.

Neste ponto, cabe registrar que este estudo visa analisar especii-camente a intervenção por meio da desapropriação, que é uma forma de retirada da propriedade do particular e transferência para o ente estatal.

Feitas estas considerações, percebe-se, portanto, que os funda-mentos para a intervenção estatal são o descumprimento da função social da propriedade, bem como a supremacia do interesse público sobre o privado, sendo este um dos pilares da atuação do Estado.

Sobre a função social, a Constituição Federal prevê ainda, no artigo 186 e incisos, que esta função é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado (inciso I); utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (inciso II); observância das disposições que regulam as relações de trabalho (inciso III); e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (inciso IV).

Nestes termos, a lei fundamental categoricamente determina a observância dos direitos dos trabalhadores, de modo que a exploração da propriedade rural favoreça o bem-estar dos trabalhadores.

Como consequência disso, caso a propriedade rural não atenda ao menos um dos requisitos previstos nos incisos do artigo 186, está justiicada a intervenção estatal na propriedade privada.

3. A exploração de trabalho escravo

A escassez de mão de obra era uma constante no chamado "novo mundo". A cultura popular moder-na é pródiga em abordar literária e cinematograicamente cenários selvagens, terras virginais, desbravadas por intrépidos cidadãos do velho mundo...

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