Imaginário Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição e Democratização da Hermenêutica Constitucional

AutorFrancisco Nogueira Machado; Hugo Pena
CargoAnalista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho, 3ª Região/Mestrando em Direito, área de Relações Internacionais (UFSC)
Páginas1-45

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Introdução

Parece ser comum na sociedade12 a percepção de que só aos operadores do direito cabe a interpretação das normas constitucionais. A visão pode ser um reflexoPage 2 da concepção positivista do direito, já que o Positivismo, ao concentrar toda a produção e aplicação normativa nos órgãos estatais, impulsionou o afastamento da população quanto ao conhecimento, uso e contribuição ao desenvolvimento do conteúdo constitucional.

Inserido no movimento pós-positivista, Peter Häberle propõe que todo destinatário da norma é dela um potencial intérprete, e que não é possível fazer um elenco fechado de quais seriam os intérpretes da Constituição. Para ele, os intérpretes não se limitam aos que estão envolvidos nas atividades dos órgãos estatais. Essa linha de pensamento é inclusiva: desconcentra a hermenêutica constitucional e a democratiza; permite transformar cidadãos receptores em cidadãos ativos na realização da Constituição na sociedade. Uma postura assim melhor se adequa a uma sociedade que se proponha a alcançar um Estado Democrático de Direito, em sentido material e não apenas formal.

Essa pesquisa partiu das idéias de Häberle, como referencial teórico, para uma experimentação da interpretação não-oficial da Constituição na prática – fazendo, para tanto, uma delimitação a certos direitos fundamentais. Isso porque essa classe de direitos é a que mais evidentemente funciona como limitação ao âmbito de ação do Estado, por atuar principalmente como proteção aos cidadãos em face deste. E aqui surge a primeira parte do problema: a proteção de direitos e garantias fundamentais depende do conhecimento de sua existência. Para que o mecanismo de proteção estatal seja ativado, é necessário que o Estado tenha notícia da violação do direito: seja diretamente, por agentes estatais, seja indiretamente, por pessoas que tomam conhecimento das violações e reportam-nas a esses agentes. É quanto ao segundo caso que esse artigo se preocupa: não é possível requerer a proteção de um direito que se desconheça. Afinal, o Estado não é onisciente, não detecta automaticamente violações aos direitos e garantias fundamentais das pessoas.

Como será, então, que nossa sociedade concebe seus direitos e garantias fundamentais? Essa é a segunda parte do problema. O contato com o pensamento de Häberle fez surgir a hipótese de que a sociedade possa conceber umPage 3 ordenamento cujo conteúdo não coincida com aquele concebido pelos órgãos estatais. É justamente isso que a expressão imaginário constitucional significa: a maneira como se concebe a Constituição independente tanto de um conhecimento científico ou acurado do texto constitucional, quanto da interpretação que os tribunais – que Häberle identifica como sociedade fechada de intérpretes – fazem da Constituição. É possível resumir a idéia: trata-se de conceber a norma apesar da norma.

O que pode acontecer se o imaginário constitucional não contiver direitos previstos pela Constituição? Como uma pessoa pode buscar proteção para um direito que ela não concebe, ou seja, que ela não sabe que tem? A preocupação essencial é com a possibilidade de que violações de direitos fundamentais não sejam remediadas por falta de ativação dos mecanismos de proteção. Na procura de respostas para essas indagações, uma primeira investigação sobre esse problema foi feita por meio de pesquisa de campo. Uma forte delimitação foi necessária para viabilizar a pesquisa. Escolheu-se um setor específico da sociedade para estudo: as pessoas que ingressaram nos cursos das Faculdades Integradas do Oeste de Minas no primeiro semestre de 2007.3 São estudantes que, à época da realização da pesquisa, estavam, em sua maioria, apenas na segunda semana de contato com o ensino superior ou tecnológico, e que haviam acabado de sair de uma camada significativa da população: aquela que completou o ensino médio.4

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O estudo levantou dados sobre a concepção de certos direitos e garantias fundamentais pelo grupo social do qual os entrevistados foram selecionados.5 Isso possibilitou determinar se o imaginário constitucional desses estudantes – intérpretes não-oficiais, na teoria de Häberle – coincide ou não com a interpretação oficial dada a certos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. A partir disso, buscou-se avaliar o impacto prático do pensamento de Häberle em nossa realidade: a concepção popular de direitos constitucionais – ou, como aqui se propõe, o imaginário constitucional – que contenha menos direitos que a Constituição, pode atuar como fator dificultador da proteção desses direitos? Nesse caso, o que pode ser feito para endereçar o problema?

Na seção seguinte do artigo, alguns aspectos do Positivismo Jurídico serão analisados: acredita-se que esse movimento tenha contribuído para a separação entre sociedade e Constituição. Ao adentrar o Pós-Positivismo, enfoque será dado às idéias de Häberle quanto à hermenêutica constitucional. Feita essa contextualização teórica, as interpretações oficial e não-oficial da Constituição serão confrontadas.

1. Alocando legitimidade interpretativa: do positivismo a Peter Häberle
1. 1 Positivismo: concentração e primado da interpretação da norma pelo legislador

Para o positivismo, “a ciência do direito deve estudar seu objeto próprio, o direito positivo, de modo neutro” (LACERDA, 2006, p. 57). Essa postura reflete a consagração de alguns princípios como o repúdio aos conceitos valorativos ou abertos, a concentração de tudo aquilo que é jurídico na produção normativa estatal - que configura um legalismo dogmático e um rigor formalista e técnico na interpretação das normas (WOLKMER, 2006, p. 191-2).

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Wolkmer concebe o advento do positivismo jurídico como um movimento impulsionado pelo controle que a burguesia passa a ter sobre a máquina estatal após a Revolução Francesa, e que se consolida no século XIX (WOLKMER, 2006, p. 191). A burguesia, ciosa da classe de magistrados, composta por indivíduos que ainda vinham do período absolutista, fez prevalecer a concentração da interpretação legítima das normas na atividade do legislador. Isso se realizou através da codificação e da priorização do pensamento exegético-dogmático, que pregava a completude do ordenamento jurídico: seria necessário encontrar neste os próprios instrumentos de superação das lacunas da lei (BITTAR & ALMEIDA, 2004, p. 330). “O positivismo jurídico nasce do impulso histórico para a legislação, se realiza quando a lei se torna a fonte exclusiva – ou, de qualquer modo, absolutamente prevalente – do direito, e seu resultado último é representado pela codificação” (BOBBIO, 1995, p. 119).

Como lembra Barroso, ao juiz caberia apenas aplicar a norma ao caso concreto, mediante mera subsunção, despida de atividade inovadora. Trata-se de uma redução da atividade judiciária, que pode ser simbolizada na concepção do juiz como “boca da lei”, limitado a revelar o conteúdo dogmático e aplicá-lo imparcialmente ao caso concreto (BARROSO, 2006, p. 12). Quanto a este aspecto, Bobbio registra que, à época da Escola da Exegese, muito se temia que as disposições subjetivas dos juízes tomassem o lugar o próprio direito (BOBBIO, 1995, p. 79). O judiciário é subordinado ao legislativo (BOBBIO, 1995, p. 28), e "é subtraída ao juiz a faculdade de obter as normas a aplicar na resolução das controvérsias por normas sociais e se lhe impõe a obrigação de aplicar apenas as normas postas pelo Estado, que se torna, assim, o único criador do Direito" (BOBBIO, 1995, p. 29).6

1. 2 Transição para o pós-positivismo e restauração do poder interpretativo do judiciário

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Mas “[o] positivismo não é, nem pode ser, como qualquer teoria jurídica, inofensiva do ponto de vista da prática do direito (...). Mesmo quem se considere positivista tem que convir que desta sua postura decorrem reflexos na realização concreta do direito em sociedade” (LACERDA, 2006, p. 70). Um desses reflexos é o de que o aprisionamento do direito à produção estatal afasta a idéia de validade das normas da realidade social. A legitimidade não deriva desta, mas sim da dogmatização legislativa. “[N]ão têm relevância os conteúdos materiais das normas, mas apenas sua validade enquanto norma, ficando ofuscadas sua justiça ou moralidade” (LACERDA, 2006, p. 70).

O pós-positivismo caminha lado a lado com o reconhecimento da normatividade dos princípios (BONAVIDES, 2003, p. 264-5). Espíndola reforça a idéia de que a formatação pós-positivista se assenta na inserção de princípios nos textos normativos constitucionais, sendo significativo que a interpretação dos princípios dependa essencialmente da atividade do judiciário...

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