Eutanásia: do indecidível em derridá a integridade em Dworkin

AutorRebeca Fernandes Dias
Páginas1-30

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Introdução

Eutanásia: momento da decisão entre a vida e a morte - duas realidades e ao mesmo tempo dois mistérios cuja racionalidade humana não consegue captar integralmente. Parece que quanto mais o homem, por meio do desenvolvimento científico, procura dominar a vida, tecnicamente, manipulá-la, prolongá-la, maximizá- la, mais indecisões e labirintos do ponto de vista moral a ele se colocam; mais ele se depara com a insignificância de sua racionalidade lógica e cartesiana.

A imaturidade, polêmica e delicadeza que o tema da eutanásia hoje nos é apresentado demonstra que, não obstante o longo tempo que tal questão se propõe ao homem, este parece cada vez mais despreparado para enfrentá-lo.

Com o progresso da ciência e da medicina, o tema da eutanásia emerge com toda força, na medida em que se chegou num ponto em que as medidas terapêuticas permitem a manutenção da vida, por longos períodos, de pacientesPage 2 terminais. As máquinas hoje não auxiliam o homem apenas nas fábricas e no seu cotidiano produtivo, mas por ele passam a respirar e fazer os seus órgãos funcionarem, em um cotidiano vegetativo.

O direito de vida e de morte ganharam nova configuração com a evolução da tecnociência, e a partir desses novos conceitos, surgem polêmicos e conturbados questionamentos de ordem ética e moral, que fazem o Direito parecer obsoleto.

O direito como um instituto de decisão e fechamento coloca-se diante de uma questão indecidível: é legítimo se colocar fim a uma vida que para quem a vive perdeu completamente o sentido? Seria o direito à própria morte um dos direitos integrantes do rol dos direitos fundamentais? Pode o Estado fornecer um acervo ético-legal para se dar uma resposta positiva a alguém que deseja morrer?

É por esta razão, ou seja, pelo fato de a eutanásia corresponder a uma questão centrada no campo do indecidível que a análise de Jaques Derrida nos prestará um interessante, e ao mesmo tempo desconfortante auxílio. E a partir deste desconforto que a abertura do pensamento de Derrida nos causa, tentar-se-á um diálogo com a teoria de Dworkin sobre o direito e sua integridade e a solução dos conflitos nos, por ele chamados, hard cases.

1. A (in)decisão entre a vida e a morte a partir de uma perspectiva derridiana

Jaques Derrida tornou-se um dos mais importantes filósofos do século XX e sua forma de análise não permite qualquer enquadramento em um determinado paradigma ou campo de análise filosófico.

No entanto, pode-se considerar que Derrida começou a se impor no curso do período filosófico francês chamado estruturalismo, referente à década de 60. Todavia, Derrida acabou distanciando-se do estruturalismo, sendo chamado hoje de pós-estruturalista1. Gilbert Hottois, não obstante assumir a dificuldade de sePage 3 enquadrar Derrida e outros autores como Michel Foucault e Deleuze numa determinada rubrica filosófica e, as peculiaridades da produção teórica de cada um deles, agrupa-os como os “filósofos da diferença”. Como afirma este autor, os filósofos da diferença “desfazem as identificações, as localizações, as hierarquias, as separações estáveis e definitivas, absolutas, assim como o léxico metafísico a elas associado: essência, fundamento, universal, um, sujeito, objeto, etc.”2 A diferença ou diferenças que afirmam esses filósofos são as diferenças que pretendem ser positivas, pois são as diferenças que produzem a diversidade, a multiplicidade, as singularidades e as descontinuidades insuperáveis.

A filosofia da diferença compreende uma hermenêutica, porém uma hermenêutica diferente, que não se refere a uma totalidade ou unidade de sentido original ou final.

Algumas idéias centrais na teoria de Derrida nos auxiliará nesta tentativa de problematizar a relação entre eutanásia e direito: a desconstrução, a separação entre direito e justiça e a compreensão desta como uma aporia, como um por vir.

É difícil delimitar o que seja desconstrução, justamente porque o pensamento desconstrutivista não permite uma definição ou uma conceituação, na medida em que seu ponto de partida é o questionamento dos conceitos e das definições dadas. O desconstrutivismo é uma forma de pensar que pretende desmontar, inquietar, mas sem destruir as linguagens engessadas nas definições – pretende, pois, dissolver a linguagem petrificada, buscando novos sentidos e novas formas de interpretação que jamais se esgotam e jamais podem se fixar. Tenta-se desfazer, sem destruir, um pensamento dominante; resiste à tirania do sentido único universalizante. Todo enunciado carrega em si a impossibilidade de dizer tudo o que se pretende dizer.

O desconstrutivismo não carrega em si uma idéia de negatividade – ele pretende desmontar o que foi edificado não com o intuito de destruí-lo, mas com oPage 4 escopo de entender como se articulam suas peças, quais são os estratos ocultos que o constituem, quais são as forças que ali agem.

A desconstrução3 também não é crítica e nem corresponde a um método – é, na verdade, uma estratégia filosófica. Se uma lei pode ser atribuída ao desconstrutivismo esta lei corresponde ao indecidível, a indecidibilidade que vai além de todo cálculo e programa. A desconstrução assume a falta de garantia de uma única racionalidade e afasta qualquer pretensão de universalidade, aceitando o “outro” e a não-razão.4

A desconstrução é, portanto, “um acontecimento singular que tem que re-estabelecer-se em cada ocasião, que tem que inventar-se de novo em cada caso”5

Derrida introduz a desconstrução da hospitalidade – a preocupação com o outro e como se pode ordenar a nossa relação com o outro.

É nesta medida que a desconstrução se apresenta a nós como uma alternativa de se pensar o direito e as respostas que este pode fornecer às inquietações trazidas pelo tema da eutanásia, ou seja, buscando-se a idéia de que os conceitos, as leis, as normas não estão acabadas, mas devem estar em constante resignificação e esta resignificação, veiculada por meio da interpretação, deve-se dar justamente através da preocupação com o outro, com o sofrimento do outro.

Esta preocupação com o outro e a idéia de alteridade correspondem a direcionamentos fundamentais diante da realidade das sociedades contemporâneas, que, como bem afirma Katya Kozicki, “são intrinsecamente complexas e (...) esta complexidade implica, para a sua compreensão, na aceitação do pluralismo e daPage 5 indeterminação de sentido que constitui o sujeito e as identidades coletivas, ao mesmo tempo formadas de modo contingente e não-natural”.6

A democracia, característica das sociedades contemporâneas, permite a coexistência de valores diversos e diferentes concepções de bem7. Como então, conciliar esta pluralidade das sociedades com a unidade do direito?

O direito corresponde a um momento de decisão, de fechamento, de generalização congruente de expectativas para a redução da complexidade e da contigencialidade, como diria Luhman. Dessa maneira, o direito é um instrumento para se afirmar a estabilidade artificial do caos inerente da diversidade, pluralidade e complexidade que as sociedades contemporâneas democráticas exprimem.

Mas esta estabilidade artificial e estes “fechamentos” traduzidos pelo direito em normas e leis, justamente por delimitarem um sentido, uma expectativa, excluem muitas outras. Trata-se da violência mística interna do direito, como afirma Walter Benjamin e expõe Derrida em Force of the law: the mystical foudantion of Authority.

Ao se tomar uma decisão, tanto política no processo legislativo de criação da lei, quanto judicial no processo jurisdicional de aplicação da lei, uma violência é cometida no sentido de que outras possibilidades são eliminadas.

É por esta razão que a desconstrução vem ao auxílio do direito. E para deixar mais clara esta idéia é fundamental se compreender a relação entre justiça, direito e desconstrução em Derrida, a partir de seu texto, já citado Force of the law: the mystical foudantion of Authority.

Neste texto Derrida questiona-se sobre como diferenciar a força legítima que realiza o direito, da violência originária que instaurou esta autoridade e que, por ser justamente originária, não pode ser autorizada por qualquer autoridade anterior, não sendo, portanto, justa ou injusta, legal ou ilegal, legítima ou ilegítima. Deste questionamento Derrida recorre à palavra alemã Gewalt, que apesar de traduzidaPage 6 como violência, seu significado em alemão vai além, na medida em que significa uma força pública, uma autoridade legítima, poder do Estado.

A partir de sua análise desconstrutivista8, Derrida questiona os fundamentos do direito, de sua força legítima e de sua autoridade intrínseca e a relação deste com a justiça, algo que para ele deve estar separado do direito e que permite, por esta separação, a possibilidade de desconstrução do direito.

Para Derrida há uma relação complexa e interna entre direto e força/violência/poder. O momento instituidor, de fundação do direito corresponde a um ato de força, a uma violência performativa que não é justa nem injusta, legítima ou ilegítima, e que nenhuma justiça anterior, ou direito prévio poderia contradizer, ou invalidar. Isto, então, é o que Derrida denomina como místico, ou seja, este silêncio na estrutura violenta do ato fundador do direito.

Para Derrida, por ser o direito construído pelo homem, ou seja, uma estrutura construída sobre textos interpretáveis e transformáveis e, por ter a linguagem um caráter aberto, ele pode ser desconstruído. E essa possibilidade de desconstrução não é uma desgraça, mas é, sim, a possibilidade de progresso histórico, de transformação.

A justiça, por sua vez, como algo externo ao direito, não pode ser desconstruída. A desconstrução é a justiça. É ela, separada do direito, que permite a desconstrução do direito.

Assim nas palavras de Derrida...

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