Recurso extraordinário. violação indireta da constituição. Ilegitimidade da alteração pontual e casuística da jurisprudência do supremo tribunal federal

AutorLuís Roberto Barroso
CargoProfessor Titular de Direito Constitucional na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Mestre pela Yale Law School. Advogado. O presente estudo foi elaborado com a colaboração de Ana Paula de Barcellos, Professora Adjunta de Direito Constitucional da UERJ, universidade pela qual &eacut
Páginas13-28

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Introdução

Trata-se de estudo acerca da vinculação do Poder Judiciário, ao prestar jurisdição, aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da igualdade. De forma específica, questiona-se a compatibilidade com tais princípios do acórdão proferido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental interposto no Agravo de Instrumento nº 395.662-1/RS, tendo em conta a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal acerca dos requisitos necessários para o cabimento do recurso extraordinário.

O acórdão em questão deu provimento a agravo regimental, interposto contra decisão do Ministro Relator originário do feito, Ministro Carlos Velloso, para o fim de não apenas dar provimento ao agravo de instrumento e admitir o recurso extraordinário, como também para dar provimento ao próprio recurso extraordinário. Antes de examinar a hipótese objeto deste estudo, é necessário investigar o conteúdo dos princípios constitucionais referidos acima e seu modo de incidência sobre a atividade jurisdicional. O tema será examinado de acordo com o roteiro exposto inicialmente.

Parte I

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Premissas teóricas
I Segurança jurídica e prestação jurisdicional

O conhecimento convencional, de longa data, situa a segurança – e, no seu âmbito, a segurança jurídica – como um dos fundamentos do Estado e do Direito, ao lado da justiça e, mais recentemente, do bem-estar social. As teorias democráticas acerca da origem e justificação do Estado, de base contratualista, assentam-se sobre uma cláusula comutativa: recebe-se em segurança aquilo que se concede em liberdade. No seu desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial, a expressão segurança jurídica passou a designar um conjunto abrangente de idéias e conteúdos, que incluem:

  1. a existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, assim como sujeitas ao princípio da legalidade;

  2. a confiança nos atos do Poder Público, que se deverão reger pela boa-fé e pela razoabilidade;

  3. a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova;

  4. a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos como os que devem ser suportados;

  5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções isonômicas para situações idênticas ou próximas.

Consagrada no art. 2 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como um direito natural e imprescritível, a segurança jurídica encontra-se também positivada como um direito individual na Constituição brasileira de 1988, ao lado dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade, na dicção expressa do caput do art. 5. Diversas outras disposições constitucionais têm-na como princípio subjacente, a exemplo da proteção ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5, XXXVI) e do princípio da anterioridade da lei tributária (CF, art. 150, III), dentre outros.

Na dinâmica das relações entre o Poder Público e os particulares, o princípio da segurança jurídica se liga ao dever de boa-fé implícito no texto constitucional, no sentido de impor àsPage 15autoridades estatais uma conduta coerente e lógica, em respeito às legítimas expectativas dos administrados, criadas em decorrência da observação, por estes, dos padrões de comportamento do próprio Poder Público. Cabe ao Estado zelar pela manutenção de um ambiente de previsibilidade e segurança em suas relações com os particulares, excepcionando motivadamente as situações que exijam tratamento específico diferenciado.

Com efeito, o dever das autoridades públicas de agir com boa-fé e de forma previsível decorre logicamente de um dos pressupostos essenciais do Estado democrático de direito1. Isso porque a relação existente entre o Poder Público e o particular não opõe propriamente duas partes privadas, cada qual defendendo seu interesse – embora também entre partes privadas haja o dever recíproco de boa-fé, como a doutrina civilista moderna tem sublinhado com especial ênfase2. Na verdade, o Estado deriva sua autoridade do conjunto de administrados, agindo em nome e por conta da totalidade da população e não por direito próprio, não se concebendo que ele possa ferir as expectativas legítimas que cria em seus próprios constituintes.

Os atos praticados a cada dia pelo Poder Público, e entre estes os atos jurisdicionais, além dos efeitos específicos que se destinam a produzir, formam o que é percebido como o padrão de conduta das autoridades estatais. Procurando adequar-se a esse padrão, os particulares praticam atos que repercutem sobre suas esferas de direitos e obrigações, fiados na legítima expectativa de que o Estado se comportará, no presente e no futuro, de forma coerente com sua postura no passado. Note-se, portanto, que o dever de boa-fé é um limite jurídico à ação discricionária do poder estatal, que não pode simplesmente adotar qualquer comportamento, encontrando-se vinculado a agir de maneira uniforme diante de situações idênticas, não surpreendendo o particular injustificadamente, em desrespeito à segurança jurídica.

O tema é amplamente explorado pelos administrativistas, como se pode verificar dos registros doutrinários de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Celso Antônio Bandeira de Mello e do professor francês Michel D. Stassinopoulos, respectivamente:

"A segurança jurídica tem muita relação com a idéia de respeito à boa-fé. Se a Administração adotou determinada interpretação como a correta e a aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação. (...) Se a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por respeito ao princípio da segurança jurídica, não é admissível que o administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo"3. (grifos acrescentados)

"Cumpre, no Estado de Direito, que os administrados estejam, de antemão, assegurados de que o proceder administrativo não lhes causará surpresas. E não as causará tanto porque outros fins, que não os estabelecidos em lei, estão vedados ao administrador, quanto porque estes mesmos fins sóPage 16podem ser alcançados pelas vias previstas na regra de direito como as adequadas ao caso"4. (grifos acrescentados)

"Si l'autorité administrative a exercé son pouvoir discrétionnaire non pas simultanément, mais successivement dans plusieurs cas, est-elle obligée de procéder toujours de la même façon? La notion de 'bonne administration' impose la réponse affirmative;"5

Em diversas ocasiões, a jurisprudência tem invalidado atos dos demais Poderes, em especial da Administração, por considerar que eles teriam violado deveres indispensáveis à segurança jurídica:

"PROCESSO - ORGANICIDADE E DINÂMICA. Defeso é voltar- se, sem autorização normativa, a fase ultrapassada. A época de liquidação de precatório não enseja rediscussão do título executivo judicial. Óptica diversa implica olvidar a organicidade e a dinâmica do Direito, alçando o Estado a posição que não o dignifica. Paga-se um preço por viver-se em um Estado Democrático de Direito e nele encontra-se a estabilidade das relações jurídicas, a segurança jurídica, ensejadas pela preclusão"6. (grifos acrescentados)

"Contemplando a lei nova a preservação do direito não só daqueles que, à época, já eram beneficiários como também o daqueles empregados admitidos na respectiva vigência, forçoso é entender-se pela homenagem à almejada segurança jurídica, afastada a surpresa decorrente da modificação dos parâmetros da relação mantida, no que julgada procedente o pedido formulado na ação"7. (grifos acrescentados)

"Os parâmetros alusivos ao concurso hão de estar previstos no edital. Descabe agasalhar ato da Administração Pública que, após o esgotamento das fases inicialmente estabelecidas, com aprovação nas provas, implica criação de novas exigências. A segurança jurídica, especialmente a ligada à relação cidadão-Estado rechaça a modificação pretendida" 8. (grifos acrescentados)

"Não pode o Estado, após vincular-se ao entendimento de que aceita como boa tradução do idioma sueco para a língua inglesa, elaborada por tradutor juramentado no estrangeiro, recusar versão daquele idioma para nosso vernáculo, feita por pessoa juramentada em idênticas condições"9.

A mesma espécie de exigência relacionada à segurança e previsibilidade, por idênticas razões, aplica-se aos atos de natureza jurisdicional. Também a atividade jurisdicional – e sobretudo ela, em um Estado de direito – deve se orientar pelo princípio da segurança jurídica. Do ponto de vista prático, isso significa que as decisões do Poder Judiciário devem ser razoavelmente previsíveis, de modo que diferentes jurisdicionados em situações equivalentes recebam a mesmaPage 17espécie de resposta judicial10, em especial quando se trate do mesmo órgão jurisdicional e não se cuide de hipótese original, já contando o tema com farta e pacífica jurisprudência11.

Notem-se ainda dois aspectos importantes. A segurança jurídica está relacionada com a necessidade de respostas coerentes para hipóteses semelhantes ou equivalentes. Por natural, se o órgão jurisdicional considera que o caso que lhe cabe decidir é diverso daqueles que deram origem a determinado entendimento jurisprudencial, ele estará...

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