O Abismo entre a Democracia Constitucional e o Sistema Punitivo do Estado

AutorWaykson Cerqueira
CargoBacharelando em Direito pela FDV
Páginas151-168

Page 151

1. Introdução

Os princípios constitucionais são, atualmente, os pilares que sustentam todo arcabouço jurídico, dando-lhe legitimidade, uma vez que todo acervo normativo que consta presente em nosso ordenamento jurídico, baseia-se nessas regras principiológica que nortearão as condutas dos indivíduos a fim de promover a segurança e a proteção da sociedade dos possíveis poderes arbitrários do Estado.

De fato, ao considerar esses princípios, pensaríamos que estes seriam suficientes para assegurar os direitos que são oferecidos à sociedade, o que acaba se tornando uma fantasia, quando analisamos o direito na realidade fática em detrimento da realidade formal, expressa na lei. Vale mencionar que o tema a ser abordado visa discutir os princípios constitucionais da dignidade humana na perspectiva penal, ou seja, avaliar a prática do sistema penal mediante suas ações em garantir aos presos seus direitos com regras mínimas que lhe darão um pouco que seja de dignidade.

No primeiro momento, apreciar-se-á esses princípios da dignidade humana conquistados pelo homem durante sua emancipação como indivíduo, consubstanciado com os valores burgueses e a construção do estado democrático de direito, conjuntamente com a análise dos direitos existentesPage 152 dos presos, pois embora serem expressos em legislações, estão longe de serem de fato efetivados.

Por conseguinte, tratar-se-á da construção do pensamento de vigilância e punição do homem e do sistema penal, o qual é legitimado pelos valores imanentes na consciência social, conquanto esses valores sejam reflexos da imposição de dominação de uma classe mais favorecida em detrimento da classe menos favorecida, ponderando os efeitos dessa relação de poder que subjuga determinada parcela da população que são afetados pelo sistema punitivo estatal e não possuem seus direitos observados, somente usurpados.

Em virtude dessas declarações, trabalha-se no corpo do texto a idéia de crime e sua concepção social, visto que a criminalidade é fruto da denominação do próprio sistema legal que tipifica certas condutas como criminosas, dissertando, em seguida, como a segurança jurídica garantida à população e aos presos fornece um aparato legal e consistente de leis, que nas vias de fato não conseguem seu real objetivo, que é promover uma vida digna a todos, inclusive aqueles marginalizados pelo sistema global, os quais são os principais prejudicados com o desamparo do Estado, que acaba por provocar um abismo entre as leis constitucionais e as condutas efetivas do sistema penal que marginaliza o indivíduo ao puni-lo de forma desumana.

Por certo, o presente artigo tenciona não comover, mas sensibilizar aqueles que desconhecem a discrepância entre as leis e a realidade fática, vivenciadas no cotidiano dos encarcerados pelo sistema penal, que são estigmatizados por suas condutas delituosas, reproduzindo a imagem de uma justiça fria, a qual concebe sumariamente ao preso um preço muito alto a ser pago pelo seu pecado, talvez o pecado de nascer em um ambiente fétido, sem um mínimo de oportunidade a se vislumbrar.

O tema proposto é estruturado em tópicos referentes aos assuntos aludidos acima e, para facilitar o estudo do texto seguem-se métodos, os quais visamPage 153 chegar a determinado resultado, utilizando-se do Método de abordagem Dialético para contrapor a contradição inerente ao tema exposto e, ainda, do método de procedimento monográfico, cujo estudo é feito de maneira profunda sobre determinado fato, debruçando-se sobre o fato com o propósito de inferir aspectos não muito claros a respeito dessa temática. Por último, baseia-se em pesquisa bibliográfica, descrevendo o objeto por análise de estudos de natureza bibliotecária, editorial e via internet.

Em derradeiro, as conclusões apresentadas visam esclarecer as contradições de uma relação complexa entre o homem e seu representante; o Estado, posto que este tem a precípua função de manter o funcionamento do corpo social, proporcionando de forma igualitária condições dignas de sobrevivência para o homem, com o escopo ao principio da dignidade humana, da igualdade, do bem coletivo, e de todos os princípios que garantam a harmonia das relações sociais, com intuito ao bem comum, o qual resgata os valores democráticos.

2. Dignidade humana perdida

É antiga a idéia de que os presos não têm direito algum. O condicionamento é maldito e, sofrendo a pena, é objeto da máxima reprovação da coletividade, que o despoja de toda a proteção do ordenamento jurídico que ousou violar. O criminoso é execrável e infame, servo da pena, perde a paz e está fora do direito. No direito primitivo impunha-se ao delinqüente a pena de expulsão do grupo (que virtualmente significa a morte), forma expressiva de retirar-lhe, por completo, a proteção do direito.1

A humanidade surgiu de forma até hoje desconhecida, teses e mais teses supõem diversas teorias (teoria criacionista, teoria evolucionista, etc.), as quaisPage 154 tentam explicar e nos convencer de que não somos advindos do pó, como a doutrina cristã prega. A reflexão sobre o existencialismo do homem nos faz enxergar todo o complexo de ações produzidas por este, inclusive o grau de evolução que atingimos durante toda longínqua história de nossa existência, principalmente, no que tange às conquistas de direitos humanos de várias gerações, que garantiram todo status de ser humano atual, cuja tutela do indivíduo ficou a encargo do Estado; o mantenedor da ordem jurídica - instituição máxima de representação dos direitos coletivos.

A relação existente entre a criação de uma ordem jurídica que vise atingir a todos em determinado território e a necessidade de criação de normas destinadas à proteção da dignidade humana se fundamenta no postulado da segurança social, no qual as liberdades individuais são tuteladas por esse sistema político-jurídico que deu origem à nossa atual Constituição Federal de 1988, considerada a mais democrática de todas às constituições que já passaram pela nossa histórica realidade de Estado independente.

Dentro desse aspecto, os direitos e garantias fundamentais conquistados, principalmente, os de terceira geração2, deram enfoque ao indivíduo como principal protagonista a ser resguardado pelo ordenamento jurídico, ensejando sua integração aos textos constitucionais. Com efeito, os principais artigos legais que vamos elencar, para título de análise do nosso tema, são os referentes à dignidade humana e todos os seus semelhantes, os quais, mais do que consolidar a inserção dos direitos do homem na Constituição, permitem assegurar os direitos dos presos.

Cabe destacar, dessa forma, os vários aparatos legais que cercam o plano teórico jurídico do sistema penal, como o principal artigo 5º da ConstituiçãoPage 155 Federal que trata precipuamente dos direitos e garantias fundamentais do homem. O inciso XLIX desse mesmo artigo dedica-se a tutelar, em específico, o respeito à integridade física e moral dos presos. Do mesmo modo, todas as outras leis ligadas aos direitos dos presos obedecem aos princípios constitucionais, por exemplo, o artigo 38º do Código Penal e dentre outros que tratam do mesmo tema nas leis de execuções penais.

Definitivamente, ao perceber que o sistema normativo se configura como leis abstratas, notam-se que a sua efetividade não se distancia da realidade metafísica, em que a dignidade humana, principalmente, a dignidade das legiões de excluídos existentes, serve somente como motivo de debates e discurso vazio pelos representantes do povo, cuja solução estaria nas consciências daqueles que talvez nunca saberão o que é ser estigmatizado pelo valor moral do crime.

3. Poder indisciplinar

Filha da escolástica3, o sentimento de justiça eterna que legitima o sistema penal, está ainda em todos os tribunais, nas leis, e, inclusive, nas instituições estatais do momento, nas quais a burocrática função do Estado é divida em poderes distintos, mas conjuntos, em clara aplicação da teoria da tripartição dos poderes4.

Logo, a função do poder judiciário - o julgador do Estado – é a jurisdicional, ou seja, a incumbência de punir todos aqueles que não agem conforme os valores morais e legais da sociedade. Na verdade, o Estado é pressionado pela própriaPage 156 idéia de contrato social5 em virtude da qual ele toma para si o papel de mantenedor da segurança dos indivíduos, acordo esse já pré-estabelecido pela sociedade.

A cosmologia social, baseada na moral maniqueísta - bem versus mal – e herdada da escolástica, é sustentada como componente ideológico do sistema penal, que é incorporado inconscientemente pela sociedade, o qual gera a idéia de vigilância constante do comportamento alheio.

Através desta incorporação, consolida-se uma forma de “poder invisível”, no qual a moral se traduz em um peso na consciência das pessoas, a partir do momento em que as próprias pessoas passam a se vigiar; isto é, com o tempo, o homem que está submetido a essa vigilância constante...

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